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ACÁCIO BARRADAS
 
Um documento inédito em defesa do Português
 

Esta preocupação de Craveirinha com a Língua Portuguesa seria um dos traços dominantes do seu perfil de cidadão, antes e depois da independência de Moçambique. O deputado Almeida Santos, que com ele privou ao longo dos tempos e chegou a visitá-lo pouco antes de morrer, mas já não foi reconhecido pelo poeta, afirmou-nos: «Mais do que um amigo de Portugal, Craveirinha era sem dúvida amigo da Língua Portuguesa».

Também o crítico e ensaista Eugénio Lisboa manifestou opinião idêntica, ao declarar-nos que ele tinha pelo nosso idioma «um amor frenético». Esse «amor frenético» pela Língua Portuguesa haveria, aliás, de manifestar-se com veemência junto de alguns frelimistas que, no delírio da luta anticolonial, quiseram condená-la à morte como instrumento do imperialismo.

Num documento inédito a que tivemos acesso por gentileza do seu detentor, o advogado Adrião Rodrigues - e que faz parte da correspondência clandestina que Craveirinha manteve com o escritor Luís Bernardo Honwana durante o período em que ambos estiveram prisioneiros da PIDE para instrução do processo em que foram condenados por «actividades subversivas» -, a sua opinião não podia ser mais clara nem mais firme.

Não obstante as condições difíceis em que esta correspondência se realizava, escrita às ocultas e utilizando material precário (uma simples Bic e papel higiénico), com permuta de mensagens atrás do autoclismo da retrete, a verdade é que nem assim as palavras de Craveirinha perdiam fulgor. Neste caso, em defesa da Língua Portuguesa, como se verá:

«Irmão Luís:

«Bem! Tens de arranjar argumentação simples para esmagar as teses desse Mulhanga. Sobre o português pergunta-lhe sobre a camisa, as calças e o sabão ou a pasta Colgate que ele naturalmente usa, bem como sapatos chuveiro, bacia com autoclismo, etc., e faz que ele te diga se isso não é contra a tradição, se isso não é uma concessão às coisas dos brancos e neste caso às coisas que os portugueses puseram cá. E no entanto ele usa a camisa, já pôs com certeza uma gravata ao pescoço e foi ao cinema e apanhou o machimbombo.

«A traição não está na língua portuguesa, se pusermos a língua portuguesa ao serviço de Moçambique, a traição é pôr o ronga, o changana, o suaíli, o maconde, etc., ao serviço dos portugueses.

«Os ingleses espalharam a língua inglesa pelas suas colónias e é com a própria língua que os povos se libertam e discutem com eles ao nível internacional.

«A língua é um instrumento como o alicate, o tractor, a carabina, a bala, o compasso, o radar. A partir do momento em que os pomos ao nosso serviço passa a ser uma coisa nossa, pertence ao nosso domínio.

«Esse é outro problema que temos de enfrentar corajosamente. Agarrar na língua portuguesa e moçambicanizá-la. Tal como foi abrasileirada ou como o espanhol foi sul-americanizado, mexicanizado, cubanizado, etc.

«Pergunta-lhe como é que ele se entenderia com um maconde e um maconde com um sena, um sena com um ronga, um ronga com um macua, um macua com um suaíli, um suaíli com um changana, um changana com um chope, um chope com um bitonga se não houver um meio de comunicação comum para todos? Teremos todos de aprender todos os idiomas e dialectos moçambicanos oficialmente?

«Diz-lhe que não tome café e não coma o pão. Isso não é tradicional. E recuse o banho de chuveiro e o cagar sobre uma tampa de baquelite.

«Não devemos ser reaccionários mas revolucionários. Ele que pegue na azagaia e faça frente aos tipos. Haverá logo outros Magul, Marracuene, Macontana, etc.»

 
Hostilidade ao Ronga mas não ao Inglês
 

Esta defesa da Língua Portuguesa, até como estratégia para a unidade da nação futura, não significava, porém, o repúdio dos idiomas e dialectos indígenas. Nesse sentido, José Craveirinha foi um dos responsáveis pela publicação, n'«O Brado Africano», a partir de 24 de Dezembro de 1954, de uma página informativa denominada «Xi-Ronga», utilizando aquele idioma.

O facto daria origem a acusações de nativismo e a um clima de hostilidade por parte dos meios reaccionários do costume, o que levou o jornal a pôr os pontos nos is, demonstrando que havia melhores razões para publicar uma página em ronga (afinal uma língua de Moçambique) do que fazê-lo em língua inglesa, tal como procediam, sem que ninguém protestasse, dois grandes diários da capital: o «Guardian» e o «Notícias da Tarde».

E mais aberrante ainda, conforme «O Brado Africano» assinalou na mesma edição, era o facto de a Sociedade Comercial de Lotarias de Moçambique «publicar a lista dos seus prémios - no verso dos bilhetes e nas folhas volantes que distribui - em moeda estrangeira, ou seja, em libras. Os prémios são pagos na nossa moeda, os bilhetes são comprados por portugueses (a sua maior parte, supomos), estamos em território nacional, falamos português (...), mas, incompreensivelmente, os prémios dos bilhetes daquela lotaria são indicados em moeda estrangeira.»

Foram aspectos como estes, de subordinação acrítica à vizinha África do Sul - para muitos a verdadeira «metrópole» de Moçambique durante o período colonial - que no início de 1958 levaram o Prof. Jorge Dias a proferir em Lisboa, no Centro de Estudos Políticos e Sociais da Junta de Investigações do Ultramar, uma conferência em que dava conta das suas preocupações com o que observara durante uma viagem por terras moçambicanas. Nessa conferência, terá sido especialmente contundente com a sociedade branca de Lourenço Marques e da Beira, quer pelas manifestações de racismo verificadas, quer pela ostenção do luxo e da ociosidade que ali detectou, em flagrante contraste com a situação de miséria e inferiorização dos nativos.

O escândalo suscitado pelas observações do Prof. Jorge Dias fez eclodir nos principais órgãos da Imprensa de Moçambique, por parte de representantes da população branca (e apenas desta, o que é sintomático), um fortíssimo clamor de contestação e repúdio. Este clamor só abrandaria por interferência da censura, devido ao incómodo de tais acusações partirem, não de um inimigo declarado da Pátria portuguesa, mas de um antropólogo credenciado no meio oficial. Por algo muito semelhante, aliás, fora já proibido de residir em Angola o escritor Alfredo Margarido (hoje professor na Universidade Lusófona), que se atrevera a pôr o dedo em idênticas feridas!

 
Jornalismo e jornalistas no contexto colonial
 

Obviamente incomodado com os ataques então desferidos ao Prof. Jorge Dias por vários jornalistas luso-moçambicanos, uns de forma aberta com o nome impresso, outros a coberto do anonimato que era então prática habitual, José Craveirinha, perante a manifesta impossibilidade de dizer frontalmente o que pensava sobre o assunto, torneou a situação escrevendo um artigo sobre a missão do jornalismo e dos jornalistas.

Em tal artigo, publicado no «Notícias» de 21 de Março de 1958 sob o título «O jornalismo e a opinião pública», Craveirinha autodenominava-se «mero aprendiz de jornalista», manifestando-se todavia com o direito de expor os seus conceitos sobre «a função da Imprensa» e «a responsabilidade que pesa sobre o jornalismo» como «orientador da opinião pública».

Nesse sentido, considerava que «o profissional da Imprensa deverá firmar-se numa linha de isenção a toda a prova e ser um expositor de ideias baseadas em factos ou em argumentos assentes num raciocínio lógico e coerente.»

Depois de acentuar que «o jornal, desde que sai à rua, já não é uma simples folha volante com caracteres impressos, mas, sim, um agente da opinião pública perfeitamente em acção», e que «um jornal, de mão em mão, é um agitador de consciências», José Craveirinha considerava que «compete ao jornalista fazer que o jornal actue como fonte fidedigna de informação e de educação».

Mais adiante - e numa alusão indirecta à polémica levantada pelo Prof. Jorge Dias -, afirmaria que o jornalismo «deve orientar com elevação a opinião pública mesmo quando entra em polémica», pois «a polémica, para o jornalista, será sempre uma discussão de ideias. E todo o escrito na Imprensa outra razão não deve ter senão a de pôr o leitor perante opiniões contraditórias ou divergentes, das quais, ele, jornalista, extrairá, por sua vez, a opinião destinada a servir a consciência do público».

Assim - e em conclusão -, «quando o jornalista consegue que o leitor se identifique consigo intelectualmente e emocionalmente, usando a expressão da verdade, a missão do jornal cumpre-se integralmente.»

Não deixa de ser curioso que, logo na edição do dia seguinte, Nuno Bermudes, um dos atacantes do Prof. Jorge Dias, viesse «acusar o toque», proclamando que «tudo quanto se possa dizer dos vários processos jornalísticos corre o inevitável risco de ser discutido a partir de um ou mais pontos de vista diametralmente opostos.»

O jornalismo seria, em muitas outras ocasiões, objecto de análise de Craveirinha. E não deixa de ser interessante verificar que, confessando-se «aprendiz» da profissão em 1958, cinco anos depois já se sentia à vontade para, em carta aberta, aconselhar publicamente um «jovem aprendiz de jornalista» que se mostrara fascinado com o «jornalismo à brasileira» do repórter David Nasser na revista «O Cruzeiro».

Observando, com grande lucidez, que aquele «monstro» do jornalismo sul-americano já não era o que fora, pois «há um tempo para cá parece que mudou, não o estilo (...), mas as ideias que caracterizavam a sua personalidade», Craveirinha dirigia-se ao hipotético neófito admirador de Nasser, esclarecendo-o:

«Sabes que mais? Não há jornalismo à brasileira nem jornalismo à americana, nem jornalismo à Xipamanine ou jornalismo à Munhava. Jornalismo é jornalismo em toda a parte (...). Sempre que autêntico. (...) Jornalismo é aquilo que o jornalista comunica ao grande público. O público que compra o jornal para ler a verdadeira notícia, a reportagem séria, a crítica aberta. Esse público é que precisa de não ser mistificado pelo jornalismo, seja da Patagónia ou da Cochinchina. Não se lhe dar "gato por lebre".»

Chamava depois a atenção para as condições de trabalho (e de liberdade de expressão) que diferenciavam os recursos de David Nasser e dos jornalistas moçambicanos, imaginando o que ele poderia fazer se trabalhasse num órgão de Imprensa de Moçambique, na certeza de que, apesar de mestre, «falhava redondamente».

Daí que ironizasse: «Era ou não um gozo ver o David Nasser em palpos de aranha para arrancar uma das suas reportagens aqui? Está claro que era, embora por outro lado fosse muito triste. Para ele e para nós.»

Por fim, em defesa do valor e do prestígio dos jornalistas de Moçambique, entre os quais já enfileirava, José Craveirinha escrevia: «Não julgues que nós aqui não somos jornalistas eméritos. Somos. Há mais mérito no pouco que escrevemos do que no muito que David Nasser já disse ou tem dito. Somos jornalistas de academia. O que o público lê da nossa lavra é muito suor, muito esforço. O David Nasser, tenho a certeza, não conhece estas dores de parto jornalísticas.»

Como que a ilustrar as dificuldades assim enunciadas, o jornal «A Tribuna», onde este texto saiu em 9 de Novembro de 1963, apresentava por vezes uma insólita mensagem publicitária no local fixo da segunda página diariamente reservado ao editorial. Era a demonstração óbvia de que tinha havido um corte de censura e não houvera tempo de substituir o texto por outro.