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NO DIA DA MULHER
8 de Março de 2006

JOSÉ AUGUSTO MOURÃO
O modo que têm as mulheres de falar de Deus

Todos aqueles que trataram da divindade, tanto os bárbaros como os Gregos,
esconderam os princípios das coisas e transmitiram a verdade por meio de enigmas,
símbolos e depois alegorias, metáforas e outros processos análogos,
tais como os oráculos dos Gregos e Apolo Pítio a quem chamam justamente “oblíquo” .

(Clemente de Alexandria, Stromatas, V, 4, 21, 4)

Nunca um Deus que me envolve, me rodeia, me embala, mas um Deus metafísico
que me teria criado para me deixar culpada do meu corpo.
(Lucy Irigaray)

 

Há modos de falar: “que modos são esses de falar”? A pergunta, que é uma chamada de atenção, indica que há modos de falar inconvenientes. A noção de decorum, e de conveniência indicam uma certa normatividade no interior do mercado social da linguagem. Há modos de falar a evitar, quer em relação a pessoas, quer em relação a objectos. Mas há também um falar segundo o registo do “como se”, que é o modo da ficção. E ficcionar é metaforizar, que é um modo abdutivo de dizer. Viver sob a ameaça constante da metáfora é um estado normal, uma condição da “condição humana”, a língua natural não é nunca denotativa mas multiplana. Estamos em regime de representação quando nada salta para fora do quadro, da pintura, do livro, do ecrã. Já o modo da figuração é o modo de aparição do corpo erótico no perfil do texto. O poder da figura sugere duas coisas: o cristianismo inventou um tipo novo de objectos figurativos e, ao inventar esta nova configuração cultural, invocou essa região de que se ocupa hoje a metapsicologia freudiana (sonho, fantasma, sintoma). A analogia é, antes de mais, a contestação da suficiência do logos. R. Thom diz que toda a analogia é verdadeira. Donde a inevitável pergunta: Deus é uma metáfora usada, uma catacrese, ou uma metáfora viva? A questão dos nomes divinos é uma questão clássica na teologia. Que atributos convêm ou não a Deus? Há denominações que não convêm a Deus: leão, sol, etc. Por que via nomear o Outro?

Falar de Deus é interromper o “já dito” e arriscar-se no “dizer”, que implica a presença àquilo que se diz. O recurso às “autoridades” é como que suspenso para que seja cada um, a partir do corpo de desejo que o constitui como sujeito, fale. E falar é expor-se. Autoratitividade é hoje um conceito utilizado no ciberespaço para designar exactamente a posição de quem fala, autorizando-se a si próprio a falar. O objectivo da poesia religiosa é relembrar a fé dos começos - o inter-dito do mistério pascal. É essa a sua objectividade. A sua característica maior é, porém, a sua fisicalidade. A fé nasce do corpo. É esse o lugar da subjectividade da palavra. O conhecimento de Deus é nupcial, para o poeta religioso. A mística anuncia uma sensualética. A Via Real da razão estética é o corpo e o seu reino, o entusiasmo e o reconhecimento; por isso a poesia religiosa é de adoração. E é sobretudo auto-implicativa: no que diz, o poeta põe-se em questão, expõe-se. A poesia religiosa é profundamente ética porque está sujeita ao outro e ao carácter de "responsividade", de interlocução, de qualquer palavra. A grande poesia religiosa é interrogativa, e não apenas assertiva. Mais evocativa do que afirmativa. Como uma prática iconoclasta da linguagem. A poesia religiosa é de transporte, e de transporte colectivo, isto é, metafórica. Por causa do seu referente último, o Rosto de Deus, que provoca a ruína das figuras com que O dizemos.

As mulheres falam de Deus a partir de uma infra-teologia que diz a inumerável obscuridade da relação do homem com o mundo sob a forma de antinomias e paradoxos. Assim Teresa de Ávila, Hildegarda de Bingen, Simone Weil, Adélia Prado ou Maria Gabriela Llansol. O acontecimento em que se origina o amor é o encontro. Ora, o encontro prescreve quatro funções: a força da errância, a dor da imobilidade, a fruição do imperativo, a invenção da narrativa. Porque escrevem (as mulheres)? Em Onde Vais, Drama-Poesia Llansol dá uma resposta fulgurante: “Para bater levemente à porta do mundo…” Para contrariar o “assim é” da história. A “cordialidade” do sentido é bem mais pregnante do que o “assim é” do discurso da teologia totalizante.

Hildegarda lê o mundo em termos de correspondências: não há apenas um mundo, mas o “mundo uno” (unus mundus). A partir de 1141 começou a redigir as suas visões. A sua primeira obra visionária chama-se Scivias. O título é uma contracção da frase: Sci vias domini – conhece os caminhos do Senhor. A sua obra musical encaixa-se harmoniosamente com as suas visões. Talvez porque as visões não eram apenas “visivas” mas “sonoras“. Quando chega o dia da sua morte, aos 81 anos de idade, chamou as irmãs e pediu-lhes que entoassem hinos nupciais. Uma outra mística, Juliana de Norwich (1373), tem uma visão corpórea das chagas, ferida de contrição, de confissão e de amor ardente. Nas suas visões (showings) ouve o seu bom Senhor dizer-lhe: “Tudo acabará bem”. Para Juliana Deus alegra-se por ser o nosso Pai e alegra-se por ser nossa Mãe e verdadeiro Esposo. Teresa de Ávila refere em La vida uma doce dor, uma dor fortíssima, mais espiritual que física, desejada. Porque é Deus quem dói por dentro. E dói provocando felicidade. Os homens desacreditam-na. Há uma página admirável no Caminho de perfeição em que se abre totalmente a Cristo e com ele desabafa as suas mágoas interiores: “Senhor da minha alma, tu, quando peregrinavas aqui na terra, não desprezaste as mulheres, mas as favorecestes sempre com muita misericórdia e encontraste nelas muito amor e até mais fé que nos homens…vejo chegarem os tempos em que não haverá motivos para subestimar espíritos virtuosos e fortes, pelo simples facto de que pertençam às mulheres” (CE, 4,1). Melhor é ler o prólogo e o primeiro capítulo dos Conceitos do amor de Deus. Teresa afirma que Deus lhe tinha dado “um grande gosto (regalo) cada vez que ouço ou leio algumas palavras dos Cantares de Salomão”. No prólogo do Castelo interior justifica a ordem que recebeu de voltar a “escrever coisas de oração”. Estas coisas escreve-as no feminino. Aí se conjugam o experimentar, o entendimento e o dar a entender, não submetido à passividade que se atribui à mulher. Llansol recusa que se fale do acesso à alteridade a partir das condições da representação, preferindo o caminho da cena-fulgor e do inter-corpo, alertando contra o ponto-voraz da fusão. As suas personagens são figuras que vivem a experiência fulgurante de mundos que se cruzam e se sobrepõem sem uma ordem rígida. Se há um movimento a que se possa dar um nome no texto lansoniano é este: despossessão. O Homem não figura aqui. Nem Deus. Ser-mundo é o que determina as personagens em Llansol, que assumem formas de humano em trânsito. O vivo, o mistério da sensualidade do poema, é o Graal que esta escrita procura. Simone Weil não embarca em escatologias. Recusa a própria ideia de progresso. Não prega a libertação, mas aceitação da condição humana, que não salva, mas dispõe à graça. A sua ética é uma ética da encarnação e do esvaziamento. “Só uma coisa de Deus podemos saber: que Ele é o que nós não somos. Apenas a nossa miséria é a imagem disso. Quanto mais a contemplamos, tanto mais O contemplamos” (A atenção e a vontade, 1994: 139-140). Nada na sua filosofia nos leva ao quietismo e à fuga do real, mas ao enraizamento. O seu percurso leva-nos à busca errante e contínua da verdade. “Senti, sem estar de maneira alguma preparada, porque nunca tinha lido os místicos, uma presença mais pessoal, mais certa, mais real que a de um ser humano…No instante em que Cristo se apoderou de mim, nem os sentidos, nem a imaginação tiveram parte alguma; senti somente através do sofrimento a presença de um amor semelhante ao que se lê no sorriso de um rosto amado” (Attente de Dieu, 1966: 76). Já Adélia Prado é um “tu-cá, tu-lá” com Deus como nenhum escritor o fez. Para esta mulher tudo são epifanias, todo o quotidiano é revelação e encontro. Bagagem é um livro prodígio. “Quem entender a linguagem entende Deus/cujo Filho é o Verbo” (p. 22). Leia-se “Saudação”: Ave, carne florescida em Jesus…onde Deus fez o seu amor inteligível” (p. 20). O que mais surpreende nesta obra é a convergência de um cristianismo perfeitamente ortodoxo com a valorização da condição carnal e encarnada do ser humano, de que o erotismo é a expressão maior. Em Poesia reunida (1991) e no poema “Gregoriano” lê-se: “Um dia veremos a Deus com nossa carne”. “Nem é o espírito quem sabe,/ é o corpo mesmo,/ o ouvido, /o canal lacrimal,/ o peito aprendendo:/ respirar é difícil” (p. 225). Mais evidente ainda o poema “Deus não rejeita a obra de suas mãos”:

É inútil o batismo para o corpo,

e o esforço da doutrina para ungir-nos,

não coma, não beba, mantenha os quadris imóveis.

Porque estes não são pecados do corpo.

À alma sim, a esta batizai, crismai,

escreverei para ela a Imitação de Cristo.

O corpo não tem desvãos,

só inocência e beleza,

tanta que Deus nos imita

e quer casar com a sua Igreja

e declara que os peitos de sua amada

são como os filhotes gémeos da gazela.

É inútil o batismo para o corpo.

O que tem suas leis as cumprirá.

Os olhos verão a Deus.

 
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