venda das raparigas . britiande . portugal . abertura: 2006
MULHER COM VERGONHA DE ALGUNS HOMENS
Maria Estela Guedes
 

O simples facto de falar sobre a condição da mulher já o sinto como anacronismo. Algo que soa a tanta velharia como vir agora gabar as vantagens da roda, os benefícios da electricidade ou mesmo a funcionalidade das esferográficas.

O mundo correu sobre a roda, assimilou as BIC, e quase todo o conforto de que hoje goza, e garante que em 2006 a vida é tremendamente diversa do que era, aqui, em Portugal, nesta aldeia de Britiande, para ser mais precisa, há quarenta anos, provém da descoberta da energia eléctrica.

Em 1960, é claro que Britiande já conhecia a roda, pelo menos a dos carros de bois, mas nem todas as casas tinham luz eléctrica, raras dispunham de telefone e quase nenhuma de aquecimento. Escusado dizer que o televisor, esse electrodoméstico mais utilizado do que a panela de pressão, mal acabara de se estrear na vila.

Com a mulher sucede algo inigualável, apesar de parecido: ela existe praticamente desde o Quaternário, se não for mais antiga ainda, tem sobrevivido a inúmeras extinções de espécies, apesar de permanentemente ameaçada pelo desemprego, pela porrada do marido, pela discriminação religiosa, etc.. No entanto, a sua existência, com quanto implica a sua singularidade biológica, decorrente da condição de fêmea, ainda não foi universalmente tão bem aceite e assimilada como a roda, a electricidade ou até a teoria de que os dinossauros se extinguiram por causa do impacto de um grande meteorito sobre a Terra.

Pensar que a igreja católica não consente mulheres com os graus obriga o cérebro a retorcer-se em ângulos agudos para tentar compreender - e não compreende. Saber que certas potências maçónicas não aceitam mulheres nas suas fileiras obriga o cérebro a desfazer os retorcidos católicos a ver se entende - e não entende.

A condição do homem macho - sem exclusão do homem fêmea, está visto - parece impreparada para sobreviver psicologicamente sem um rival, um outro, idêntico, que possa dominar em actos de agressão para sobressair como Macacus dominantis - e a mulher, quem sabe se a esposa, está ali mesmo à mão de semear para servir a esse fim, em especial quando deixa que o macho homem lhe bata, a não leve para os templos e outras igrejas, não vote nela para deputada, nem para presidente de empresa, e ainda menos para generala das tropas.

A mulher aguenta dores atrozes com os partos, as menstruações, pesos de partir a coluna com os filhos às costas, as botijas de gás, os sacos de batatas... Aqui em Britiande vive uma mulher que ainda é minha parenta, considerada a pessoa mais idosa da terra, com cem anos, que continua a fazer os trabalhos do campo como se tivesse cinquenta ou sessenta. Uma tarde vinha com um saco de batatas às costas, parou na quelha de cansada, ofereci uma ajudinha para levantar de novo o saco. Ó machos fortes, ferozes e façanhudos da minha idade! Havíeis vós de pegar na saca, eu sou uma fêmea sem grande força nas mãos, agora a velha Isaura, só vos digo: se ela não tivesse agarrado a saca pela boca, lá teria eu espalhado as batatas pelo caminho!

Tem cem anos, daqui a vinte é bem capaz de ser essa a média de sobrevivência das fêmeas mulheres, já se sabe que os homens machos duram bem menos, e não é por se cansarem a carregar sacos de batatas. São mais fracos, a sua arquitectura biológica é muito diferente da da mulher.

Não quero dizer com isto que devam ser seleccionadas para o Parlamento mulheres de músculo e buço farto, estou só a gastar cera com ruim defunto, porque estes assuntos não me movem filosoficamente, não me motivam à crítica, não me inspiram poeticamente, estes assuntos só me chateiam, por isso o único modo de falar deles é o emocional.

E então é lamentável verificar que uma das alas da Maçonaria - nem mais antiga, nem mais verdadeira, nem mais tradicional que as outras, apenas uma delas - envergonha as ordens maçónicas que desde sempre honraram o trilema da Liberdade, Fraternidade e Igualdade. Não permitir o acesso das mulheres ao sacerdócio é uma violação dos três lemas, mas é sobretudo uma vergonha para os outros maçons, que têm de aceitar a existência de tais atrasos de vida como seus companheiros de via.

A Maçonaria é uma estrutura vazia, de ritos ridículos e ocos, se não assentar, como outrora assentou, em utopias e ideais pelos quais houve duros combates e gloriosas vitórias. A Maçonaria alcançou a proliferação de escolas, o derrube de ditaduras, a promoção da mulher, sobretudo como votante e educadora, a Maçonaria alcançou uma vitória imensa sobre os regimes esclavagistas, e é de todos conhecido que quantas vezes o saco das esmolas foi usado para libertar escravos!

Mas os tempos mudam. Essa ala discriminatória está a ser subvertida por dentro, por jovens machos homens que se envergonham do que na Maçonaria é vergonhoso, como a discriminação da mulher. Em breve, uma nova geração de maçons, esclarecidos, cultos, bons companheiros e amigos, promoverá a universalização do companheirismo andrógino no interior das lojas só de machos homens, com isto volvendo aos bons costumes da mais antiga ordem maçónica que conheço, a Maçonaria Florestal (Carbonária). Os carvoeiros sempre contaram com as Boas Primas, não só no templo, como nos campos de batalha.

Envergonha-me ter de aceitar como Irmãos e Bons Primos pessoas que da Maçonaria só têm a vivência do vazio - um hábito obscuro com muito pechisbeque pendurado ao pescoço, mais meia dúzia de ideias tolas que tomam pela Tradição - e certamente nunca se interrogaram sobre a natureza civilizacional dos alicerces do templo que frequentam. Se se interrogassem, seriam menos chimpanzés e mais civilizados. Se interrogassem, saberiam que traditio é a passagem de testemunho, e que o testemunho é o da loja mista e não o da loja dos macaquinhos de estimação.

StellaCarbono (M.'.C.'.)

Britiande, 03.03.06

 
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