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Versões do Feminismo na Amazônia brasileira:
Orminda e Eneida
nos contextos nacional e internacional
MARIA LUZIA MIRANDA ÁLVARES

Sumário

Introdução
1. Feminismo e Feministas: entre histórias e movimentos
1.1. Ideologias, conceitos e práticas feministas
1. 2. Os caminhos históricos do feminismo
2. As vertentes brasileiras do feminismo
3. As versões do feminismo Amazônico: entre a corrente liberal-burguesa
e a socialista

3.1. O Feminismo sufragista, na versão da imprensa, no Pará
3.2. O Sufragismo de Orminda Bastos
3.3. Eneida de Morais e sua versão partidária anti-sufragista
3.4. O anti-sufragismo de letrados e letradas paraenses
4. Amarrando alguns tipos... criando conclusões
BIBLIOGRAFIA

3.3. Eneida de Morais e sua versão partidária anti-sufragista

O sufragismo brasileiro, fundamentado na "manutenção da mística feminina como base de unidade do debate" (ALVES, 1980), não representava ameaça às práticas tradicionais da mulher. Entretanto, nas discussões que se observa, na imprensa, há reação às transformações que este pudesse acarretar ao papel feminino expresso, através da trilogia conservadora. Se a condição para ser sufragista não "arranhava" esse modelo, o que representavam, então, as críticas anti-sufragistas? Qual a origem do anti-feminismo de Eneida de Moraes?

O perfil de E neida de Moraes ou, simplesmente, Eneida, era de jornalista, poetisa e cronista. Era paraense e criada numa época em que a política fervilhava em Belém. Era a época dos oligarcas Lauro Sodré e Antonio Lemos. Deixou a cidade natal em 1930, para fixar residência no Rio de Janeiro, onde faleceu em 27 de abril de 1971. A preocupação constante com as injustiças sociais fez com que Eneida se engajasse numa corrente de opinião política– o comunismo -, para contestar o sistema vigente. Em todos os movimentos de reivindicações sociais ela estava presente. Ativista social, escritora, jornalista, confessadamente marxista, liderava greves e movimentos populares, defendendo abertamente suas idéias. A arma usada era a palavra incisiva, contestadora, ora discursando, ora escrevendo para revistas e jornais. Sobre o ativismo feminino no movimento sufragista que se alargava nacionalmente, disse Eneida numa de suas crônicas diárias no jornal “Estado do Pará”:

"Mas você, não é feminista?

Por que?

Não sou feminista porque não sou - essa é a razão primeira. A segunda, é que ainda não compreendi o feminismo, como as mulheres querem que ele seja.

Ouça lá: você conheceu D. Eulina de Souza? Uma senhora que fazia conferências que eu nunca assisti, com medo. Conheci pessoalmente D. Eulina uma senhora ... nada conferencista, que era mãe de muitos filhos que amedrontava a gente com o que dizia.

Estou a vê-la, na escadaria do Municipal que tantos ilustres pés femininos têm passado ... (...) E D. Eulina, vestida de escoteiro ou coisa que o valha, dizendo coisas que ninguém compreendia. (...)

Foi por isso que a polícia a prendeu. Deselegantíssimo.

O que diria D. Eulina? ....

Que nós devemos vestir-nos de escoteiros! Que precisamos deixar o encanto que Eva nos deu comendo o fruto proibido? Que precisamos votar para endireitar a terra? Que o Brasil só será Brasil quando as mulheres governarem-no? Que precisamos excluir o homem, tirá-lo todos os direitos, e sacudi-lo para o reino animal como o mais feroz dos animais? (...)

Estou convencida que o feminismo é como o espiritismo e o futurismo, essas coisas em ‘ismo’ que são um mundo que ninguém compreende porque é feito de tantos inverossímeis, de tantas complicações, que os mais de boa vontade custam a convencer. (...)

Eu penso assim: a mulher é... três ou quatro vezes mais inteligente de que o homem. Mais arguta, mais perspicaz. A mulher é o sexo forte. Sem mulher, não há arte, não há beleza, não ha vida. Os homens mais anti-feministas são os primeiros a confessarem isso. Mas o destino, essa coisa irônica e errada que faz o burro inteligente e a águia burra, quando devia ser francamente ao contrário, fez da mulher um objeto de luxo, que o homem não considera ou considera demais.

Por que estão as fábricas cheias de operárias? Por que prefere o comércio empregadas? É que a mulher tem muito mais disposição para o trabalho, muito mais inteligência e pede um ordenado a que nenhum homem, por mais tolo que seja, se sujeita. É assim meu amigo, que o feminismo vence. Uma vitória falsa.

Vamos igualar os direitos. Muito bem. Todos os direitos? Então as mulheres acabarão loucas.

Por que?

O homem casado tem direito e acha-se quase na obrigação de ser infiel. A mulher que é desleal, a sociedade - outro castigo mundial - aponta com o dedo e despreza - direitos iguais? Pois sim. Eu que não acredito neles. (...)

Vamos continuar mulheres, vamos deixando o homem com a presunção de que governa. Vamos continuando frágeis, sutis, bonecas de porcelana... A nossa vitória é da inteligência.

Eu tenho um respeito muito grande pelos grandes nomes femininos que estão na história, na arte, nas ciências (...)

Parece que vão incendiar o mundo ...

E são tão deselegantes... (...)" (1)

A opinião de Eneida quanto ao feminismo, ao sufragismo, enfim, ao emancipacionismo, denuncia idéias cépticas, em relação ao movimento. Ao centrar, na figura de outra mulher, Eulina Souza, a sua aversão à militância e ao ideário feminista, tem presente estereótipos que já foram, inclusive, explorados em outras análises, porque evidenciados em alguns artigos, como o da "deselegância", da forma masculina das militantes excluindo os homens da esfera pública, para assumir o seu lugar. Para ela, salienta-se, no feminismo daquele período, uma luta surda contra os homens, possivelmente sendo essa a versão transmitida por certas feministas da época. Há ceticismo da jornalista, quanto à probabilidade de igualdade, entre os direitos masculinos e femininos, igualdade que ela vê, entretanto, não do plano da esfera pública - conforme está sendo a exigência das feministas -, mas a partir das micro-relações entre os dois gêneros. Neste plano da essencialidade humana, as transformações feministas não frutificarão, diz Eneida, visto que a sociedade é, e continuará a ser muito mais exigente, em relação às mulheres. Esse é o grande motivo da Eneida anti-sufragista. Para ela, as mulheres não precisarão provar nada, pois elas serão vitoriosas pela inteligência que possuem, que sejam "frágeis" ou "bonecas de porcelana", o poder pertence a elas, deixando os homens presumirem que são eles que governam.

A "profissão de fé" das feministas paraenses ao credo espírita, representa, para Eneida, um compromisso das militantes com a conduta feminina tradicional, visto que estas não rompem com a figura normatizada da mãe ligada ao lar (muitos filhos). Para a cronista, o "ser feminista" deverá transcender a simples aparência (projeção na esfera pública) para atingir a essencialidade das questões humanas (igualdade de fato, nas questões mais íntimas, embora consideradas "biológicas", como a do adultério, por exemplo). A reprodução das práticas femininas do espaço privado, no espaço público instituído, não tornarão, por certo, as mulheres iguais aos homens. Não havendo rupturas na essência, o feminismo, não poderá ser considerado um movimento transgressor, daí porque, será mais fácil "continuar mulher", expressando um retrato construído pelos homens, de "fragilidade", porque mais fácil será a manipulação feminina do poder "masculino" (presunção do homem de que governa). O radicalismo de certos retratos de feministas que se vestem de escoteiros, invertem a argumentação sobre a desigualdade feminina, sem compreenderem, entretanto, a essência do conceito, ou o que ele representa, em termos de mudança para a condição social da mulher (que continua a ser discriminada pela sociedade - "outro castigo mundial" -) destroem as possibilidades de entender a verdadeira "igualação dos direitos.

Através deste artigo, pode-se vislumbrar uma figura feminina de transgressão. A Eneida poeta, contista, cronista, jornalista, romperá, nesse mesmo período, com a normatização de seu quadro familiar, ao desquitar-se do marido, em Belém (Pa), seguindo para o Rio de Janeiro, abandonando a direção do lar e a educação integral dos dois filhos menores ao marido. Anos depois (1935), ao assumir o ideário do Partido Comunista, será presa e torturada pela polícia do governo de Getúlio Vargas (2). A prática da escritora demonstrou um outro tipo de feminismo anti-sufragista, exigências de umas poucas mulheres brasileiras, como Maria Lacerda de Moura, ou de outras mulheres anarquistas, Pagu, e dela própria (3). Atualmente, conhece-se a obra integral dessa jornalista através dos estudos feitos por SANTOS (2004) reconhecendo-se na sua atitude daquele momento uma reação a uma tese da corrente liberal feminista que não era encampada pelas teses comunistas.

A luta sufragista nacional alimentou a imprensa paraense ao longo dos anos 20. Este fato demonstra o não alheamento das mulheres paraenses ao movimento que se desenrolava internacionalmente e no sul do país, e cujos estilhaços eram recompostos de acordo com a interpretação de cada uma das protagonistas. Nota-se, contudo, a ausência de uma outra opinião feminina nesse período, além de Orminda Bastos, favorável à concessão ao direito do voto à mulher. Isto é plenamente justificável. A pressão negativa e constante, contrária à emancipação da mulher, encarregara-se de demonstrar as perdas femininas, no caso do gênero conseguir a emancipação civil. O retrato da feminista ou da candidata ao emancipacionismo fora construído com os recortes de uma imagem feminina estereotipada e desvalorizada, quer dizer, quem infringisse a linha tradicional de comportamentos, imposta pela “natureza feminina”, estava automaticamente banida da “ordem natural”, inscrevendo-se no campo das “transgressões”. O discurso ideológico forçando os interditos criava adesões.

 

(1) Conversando. O Estado do Pará, Belém, 8 jan., 1928, p. 1.

(2) Sobre a prisão de Eneida, em 1932, há registro nos jornais paraenses desse período. Cf. seus depoimentos sobre o assunto em seus livros de crônica Amanda e Cão da Madrugada.

(3) Nos livros de crônicas de Eneida percebe-se referências a um tipo de militância política e aspirações feministas que diferem das abordagens das sufragistas brasileiras. Cf. também SANTOS, 2004.

 
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