Vêm aí Los Infieles
by Fracaso Limitada

 

 

 

 

 

 


 

 

::::::::::::::::::::::::::Maria Alzira Brum::::::::
Coadjuvante e colaboradora em geral do TriploV.
Faço links, escrevo, edito, traduzo, me viro, sobrevivo, vivo. Livro solo: O Doutor e o Jagunço: ciência, cultura e mestiçagem em Os Sertões (Arte&Ciência); coletâneas: Tierra en trance: el cine latinoamericano en cien películas (Alianza), O Clarim e a Oração: cem anos de Os Sertões (Geração), Contos Cruéis: as narrativas mais violentas da literatura brasileira (Geração), Quartas Histórias: contos inspirados em narrativas de Guimarães Rosa (Garamond).
O relógio daquela senhora

1.

Minha avó Alzira morreu em 1973. Não acompanhei seus últimos dias, na verdade convivemos pouco pois morávamos em estados diferentes e apenas nos víamos na época das festas de fim de ano. Eu me lembro dela no quintal da pequena casa de madeira com um invariável vestido estampado entretida com seus passarinhos, sentada numa cadeira preguiçosa embaixo do sinamomo ou cuidando da parreira. Saía pouco dos seus domínios. Cheirava a uma mistura de tempero, talco e sabonete, um perfume que nunca mais senti. Ela costumava me beijar e abraçar de um jeito excessivo que chegava a me sufocar. Eu não gostava, não conseguia entender que uma carícia pudesse ser desajeitada, afobada, urgente.

Pouco antes de morrer ela entregou à minha mãe o seu relógio, um Technos suíço, e pediu que o desse para mim.

Era praticamente o único objeto de valor daquela senhora, a minha herança. Desde então o Technos me acompanha. Já não marca mais as horas, os repetidos consertos não conseguiram fazer com que recuperasse a função para a qual foi fabricado.

2.

Em1997 o Eder Chiodetto me convidou para acompanhá-lo numa visita a Hilda Hilst, a quem ia entrevistar e fotografar para o seu livro O lugar do escritor. Passamos um dia na chácara de Hilda, a "Casa do Sol", em Campinas, onde ela vivia com mais de 50 cães.

A escritora emborcou seguidas taças de vinho de Porto e falou de muitas coisas: velhice, isquemia, dos críticos que a chamaram de “velha pervertida” e da Prefeitura a quem devia décadas de IPTU, do seu pai, da sua juventude, de anjos. E que nunca morreria, seria levada pelos Ets, já estava tudo combinado com eles, que costumavam visitá-la na chácara. Mostrou-nos local onde costumavam descer e um velho jornal espírita no qual uma desbotada ilustração representava uma espécie de paraíso sideral: "logo vou estar lá." Mas todos os assuntos eram pautados, atravessados e definidos por sua entrega radical à criação: "Eu me fechei nesta casa aos 33 anos para criar uma obra literária”.

Eu tinha lido pouca coisa da Hilda e na despedida ela me deu exemplares de suas obras autografados e dedicados: "À Alzira, Amor. Da Hilda 1997". Não a tinha visto antes, não voltei a vê-la depois, mas ela me legou a coisa mais valiosa que tinha.

3.

Na sala da autora de A Balada de Alzira tinha um relógio com os ponteiros quebrados com a inscrição “É mais tarde do que supões”. Hilda contou que tinha sido presente de uma amiga que o achara no lixo. O Eder fotografou o relógio e neste final de 2006 me deu uma cópia da foto. Coloquei-a na minha sala, perto do computador.

Quanto ao velho Technos, continuo usando-o de vez em quando. Seus ponteiros destrambelhados me falam de um perfume que nunca mais, de uma carícia no vazio, disto que irremediavelmente somos: tempo.

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