Resposta à sucessão de escândalos em vários países
pode representar uma oportunidade de mudança
A Igreja Católica atravessa a mais profunda crise do
último século, com as acusações de abusos sexuais de menores por membros
do clero. Para encontrar algo semelhante, devemos recuar até início do
séc. XX, com o antimodernismo do Papa Pio X. Mas esta crise atinge um
catolicismo universal, e há um século era uma realidade pouco mais do
que europeia. Será Bento XVI, um Papa académico, capaz de afrontar um
dos mais graves problemas pastorais da Igreja? Ratzinger é um teólogo
notável no diálogo cultural, mesmo com filósofos não-crentes como
Habermas ou Paolo Flores d"Arcais. Eleito para um pontificado de
transição, cuja marca seria afirmar o facto cristão no diálogo
multicultural contemporâneo, tem o desafio de "limpar a Igreja" da sua
sujidade, como afirmou na Sexta-Feira Santa de 2005.
Esta crise pode ser uma oportunidade de mudança. A começar pela relação
entre catolicismo e sexualidade - que o teólogo Hans Küng definiu como
"crispada". Não para dizer que o celibato é a causa da pedofilia. O
celibato como opção voluntária pode ser dedicação a uma comunidade. Como
disciplina obrigatória (que já tem excepções), poderá ser revisto. É
certo que a esmagadora maioria de abusos se dá com familiares das
crianças. Como escrevia o Papa na carta aos irlandeses, a pedofilia não
se restringe àquele país ou à Igreja Católica. Pelo contrário. Mas
encarar a questão será afrontar a formação nos seminários, tantas vezes
castradora de afectos, causa profunda da pedofilia no clero.
Geração de hipocrisias
A Igreja tem, na Bíblia, uma fonte harmónica e integral que séculos de
moralismo esconderam. Ao contrário do que diz Saramago, a Bíblia não é
um manual de maus costumes. Mas, ao contrário do que pensam e dizem
muitos católicos, tão-pouco é um manual de bons costumes. A Bíblia é
sobretudo uma proposta de relação - do ser humano com Deus e entre os
seres humanos como imagem de Deus.
Aqui reside uma primeira dificuldade: muitos responsáveis católicos
insistem na abordagem dualista, legalista e pecaminosa da sexualidade. O
que tem sido gerador de hipocrisias.
A crispada relação com a sexualidade reflecte-se também no modo como a
doutrina católica olha a contracepção. Há quatro décadas, a encíclica
Humanae Vitae interditou os métodos "artificiais" de planeamento
familiar, porque alguns cardeais não aceitavam a mudança proposta por
uma vasta comissão de médicos, teólogos e casais. Se o Papa Paulo VI não
tivesse cedido à pressão da Cúria, o preservativo não seria hoje um tabu
(mesmo se distribuído aos milhares por freiras e padres na luta contra a
sida). E o catolicismo das últimas décadas teria sido bem diferente.
Esta relação difícil com a sexualidade tem manifestações como os abusos
sexuais cometidos por padres sobre religiosas, em África, conhecidos há
uma década; ou o padre mexicano Marcial Maciel, fundador dos Legionários
de Cristo, que teve filhos de várias mulheres às quais ocultava a sua
identidade; foi pedófilo, incestuoso e toxicodependente. A instituição
por ele fundada é exemplo dos grupos que hoje, na Igreja, insistem na
perspectiva moralista. Não é de estranhar que mais se condene quem mais
moralismo apregoa. Com uma agravante: as pessoas que confiavam os filhos
a responsáveis da Igreja eram membros da comunidade. Para elas, o
sentimento de traição é esmagador.
A acusação de encobrimento atinge agora o próprio Papa. Na carta aos
irlandeses, há oito dias, Bento XVI acusa vários bispos de terem falhado
"por vezes gravemente". Seria estranho que o tivesse escrito, se tivesse
telhados de vidro. De outra forma, estaria sem autoridade perante os
seus "irmãos bispos". Como prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé
(CDF), Ratzinger conhecia vários casos. Pode ser forçado dizer que os
encobriu. O mais emblemático, noticiado pelo New York Times esta
semana, revela que nem os poderes públicos agiram sobre o padre que
abusou de 200 crianças - tal como aconteceu na Irlanda. E que Ratzinger
só duas décadas depois conheceu os factos.
O célebre documento de 1962 (que Ratzinger, então um padre com 35 anos,
não escreveu), que defendia o secretismo, foi substituído em 2001, dando
um passo em frente: obrigou os bispos a comunicar os casos de pedofilia
ao Vaticano. Só nessa ocasião Ratzinger e a CDF passam a tomar conta
destes casos. Só o total esclarecimento do papel do Papa em cada caso
poderá aclarar a sua responsabilidade.
Opinião pública
O encobrimento e a tolerância social da pedofilia era a atitude normal
até há três ou quatro décadas - o caso Polanski reapareceu a recordá-lo.
Também sabemos que a comunicação social é mais severa com a Igreja
Católica do que com outros. E dá sempre mais dimensão aos escândalos do
que aos caminhos de solução e omite factos como os números aparecidos na
Alemanha serem resultado do trabalho da Conferência Episcopal.
Mas desde 1990 há uma avalancha de casos. O que se passou na Irlanda,
que durou até há poucos anos, mostra que não se atalhou o problema logo.
Em 1993, um documento dos bispos do Canadá fazia propostas de solução
que tiveram sucesso. O caminho deveria ter sido seguido por outros.
Por isso não se entende a infeliz declaração do cardeal Saraiva Martins:
a Igreja é pela "tolerância zero", mas não lava a "roupa suja" em
público. Há mais de 60 anos, o Papa Pio XII dizia que a opinião pública
é "vital" para a Igreja. A lavagem de roupa suja mais não é que uma
desafortunada expressão para referir o debate interno, que está na
matriz genética do cristianismo. E foi pela falta de tolerância zero que
se chegou aqui.
A mês e meio da viagem de Bento XVI a Portugal, percebe-se que haverá
mais casos e que há interessados em atingir a credibilidade da Igreja.
Esta tem de ser a primeira a reflectir no porquê dessa aversão e a
procurar razões no seu interior - uma atitude própria da Semana Santa
que os cristãos hoje começam. O cerco à volta de Ratzinger também
continuará. Será um Papa ferido que virá a Portugal. Talvez rodeado por
grupos interessados prioritariamente em defender a instituição dos
"ataques" - já correm textos na Internet...
Convém não esquecer que foi a preocupação pela defesa da instituição que
levou ao actual estado de coisas. Só uma atitude purificadora e aberta à
mudança permitirá à Igreja recuperar a credibilidade perdida. Os
cristãos chamam a isso ressurreição. |