MARIA ESTELA GUEDES
A poesia na óptica da Óptica
Introdução: da vogal colorida à palavra-cor
L'Oeil a-t-il été fabriqué sans aucune connaissance d'Optique [...]? Et ces choses dûément expliquées, ne paroît-il pas par les Phoenomenes,
qu'il y a un Etre incorporel, vivant, intelligent, tout-present?
Isaac Newton, Traité d'Optique

O soneto de Rimbaud, "Vogais", é a mais célebre atribuição de cores a elementos linguísticos: o A é negro, o E é branco, o U é verde, etc.. De forma explícita ou implícita, a poesia está em geral impregnada de cores. E se por vezes dado poema parece incolor, algo do domínio da Óptica contém ainda - luz. Mais do que a cor, a poesia não passa sem a claridade do dia, tal como não passa sem a escuridão da noite, sem os jogos de claro-escuro, ou sem as imagens no espelho, e os efeitos da luz na humidade do ar ou na água. Mas dará a poesia a ver essas cores e efeitos? Na palavra "arco-íris" observamos as sete cores do espectro solar? A poesia pertence à ordem das artes que apelam para o nosso olhar, como a pintura, a fotografia ou o cinema? Serão as cores da poesia susceptíveis de ser percebidas e interpretadas de diferentes modos, consoante o olhar normal, cego, ou daltónico, de quem lê? Enfim: para que servem as cores na poesia? Para pintar retratos, paisagens, naturezas-mortas? A palavra "verdura" dá mais verde à relva, a palavra "rosa" torna mais rosadas as flores, e a palavra "vermelho" atrai o nosso olhar irresistivelmente para a graça de um jardim? Quando Camões escreve: "Descalça vai para a fonte/ Lianor pela verdura", a cor pinta um lugar ou uma situação de risco? As cores da poesia são prismáticas ou pigmentos? Eis algumas perguntas a que cada poeta responde à sua maneira, como teremos ocasião de ver.

Para os textos que tenciono escrever visando dois objectivos - o de divulgar a poesia portuguesa contemporânea a pessoas das Letras, e de o fazer segundo métodos interdisciplinares, que me permitam apresentar os trabalhos em encontros com pessoas das Ciências - escolhi duas balizas teóricas, que espero forneçam alguma ordem e metodologia na abordagem da luz e das cores: Wittgenstein (1) e Newton (2). Wittgenstein procurou elaborar uma lógica das cores, tentou entender os conceitos que nos permitem falar delas, e nesse percurso fornece ferramentas que é possível usar na exegese dos poemas, como a classificação "cores de superfície" e "cores de profundidade", a que eu chamaria também cores explícitas ("Lianor pela verdura") e cores implícitas, absolutas, essenciais ou objectais, por se tratar de objectos de tal cor (cal, esmeralda, ouro) e não de superfícies pintadas de branco, com tinta esverdeada, ou douradas pelo poente.

Quanto ao físico Isaac Newton, que estabeleceu uma das primeiras teorias científicas das cores e da luz, o seu peso no meu trabalho é mais de guia espiritual. Até ao século XX, Newton era tratado sobretudo como expoente do iluminismo, das Luzes no seu sentido mais racionalista e avesso à etiqueta obscurantista que então se apunha, e decerto com motivos, à religião. Depois descobriram-se os seus textos alquimistas e uma nova face se lhe rasgou como janela, ou como Janus, o deus bifronte. O mais singular na obra de Isaac Newton, que foi divinizado, cujo nome durante décadas foi atribuído aos filhos dos seus crentes, haja em vista o Isaac Newton português, botânico portuense do século XIX, o mais singular na sua obra, do meu ponto de vista, é ter ele reservado para as duas últimas, ou para a última página do seu Tratado de Óptica, as mais significativas das raras reflexões sobre Deus que se lhe conhecem na obra científica. Pertence ao domínio da sua filiação em sociedades iniciáticas, como a literatura romanesca tem denunciado nos últimos anos, a ideia de identificar Deus com a Luz. Interessante então que seja nos livros sobre Óptica, na parte final, Perguntas que servem de conclusão a toda a obra, que se faça essa luz no espírito de Newton. Mais interessante ainda é verificar que os raros biólogos contemporâneos que não são ateus utilizam como prova da existência de Deus, e portanto como argumento contra uma hipótese de evolução devida ao acaso, a pergunta que Isaac Newton se faz a si mesmo acerca da perfeição dos olhos. Os embriologistas não ateus tornaram lugar-comum invocar a perfeição do olho dos cefalópodes como prova de que só Deus o poderia ter criado. Pergunta Isaac Newton, em tradução nossa de texto em francês: A que se deve o facto de a Natureza nada fazer em vão? Que impede as estrelas fixas de cairem umas em cima das outras? E prossegue, usando, tal como Wittgenstein, a retórica da interrogação para tornar inegáveis as suas afirmações: Terá sido o olho fabricado sem nenhum conhecimento de Óptica? Um Ser vivo, incorpóreo, inteligente, omnipresente, devia patentear-se a nós, acrescenta (Livre III, pág. 545), se fosse correcta a explicação dos fenómenos.

Sem nenhum critério especial, apenas socorrendo-me das obras que têm permanecido em cima da minha mesa nos últimos meses, reli, entre outros, Carlos de Oliveira, Herberto Helder, Mário Cesariny, Almada Negreiros, e passei os olhos por outros tantos livros recentes de novos poetas, ou de autores ainda não reconhecidos como poetas, caso de Pedro Proença, por dominação absoluta sobre eles da categoria de pintores.

O que li não chega a cem livros nem nada que se lhe assemelhe, por isso não posso invocar percentagens para realçar resultados nem para comprovar asserções. Não obstante, uma conclusão avanço desde já, por contrariar um preconceito - ou pré-conceito - com que arranquei para o trabalho: o de que os poetas-pintores escreveriam versos mais coloridos do que os não pintores. Esperar-se-ia que nos poemas de pintores como Cesariny, Almada Negreiros, Alcina Marques de Almeida, Pedro Proença, Maria Azenha, etc., a cor e a luz tivessem incidência muito mais ampla do que nos poemas dos artistas só da palavra. Nem por isso. Em uns e outros a luz jorra, mas a cor aparece com moderação nos pintores-poetas mencionados. Em Almada Negreiros, por exemplo, aparece mesmo muito pouco, se bem que, quando aparece, possa surtir efeito gritante, por se tratar de uma nova cor, nunca dantes vista - se é possível ter a percepção dela -, como é o seu "azul-cu", aliás "azul-cú", na flechante ortografia da época (3) .

Até agora, foi em dois poetas que não são pintores que mais cores e aparato óptico encontrei: Carlos de Oliveira e Herberto Helder. Em António Ramos Rosa há bastante cor, tal como assinalei em "Obra ao verde", dominando precisamente o verde. Este poeta é susceptível de abalar a minha provisória e prévia conclusão de que não é por ser pintor que o poeta usa muito a cor, pois Ramos Rosa também é um artista plástico. A excepção, de qualquer modo, só confirmaria a regra.

Carlos de Oliveira, a quem não conheço obra de artes plásticas, é o mais cromático dos poetas lidos. Não apenas isso: no seu "Trabalho Poético" (4) encontramos tudo quanto Isaac Newton possa ter ensinado, sobre reflexão, refracção, decomposição da luz no prisma óptico. E também encontramos aparelhos ópticos vários, bem como as máquinas da arte da luz, fotográficas e de filmar, sem esquecer os foto/gramas. Já fora da poesia, no romance Finisterra, como esquecer essa arte de produzir imagens a quente, como ele põe em cena de modo tão obsessivo, com a pirogravura?

(1) Ludwig Wittgenstein, Anotações sobre as cores. Edição bilingue. Tradução de Filipe Nogueira e Maria João Freitas, revista por Artur Morão. Lisboa, Edições 70, 1987.

(2) Traité d'Optique sur les reflexions, refractions, inflexions, et les couleurs, de la lumière. Par M. le Chevalier Newton. 2e éd. française. Trad. par M. Coste, Paris, Montalant, 1722.

(3) José de Almada Negreiros, Obras Completas. 4. Poesia. Lisboa, Editorial Estampa, 1971.

(4) Carlos de Oliveira, Obras. Lisboa, Editorial Caminho, 1992.

PARA VER
A Viagem das Palavras (estudo sobre poesia)

Autor(es): Júdice, Nuno
Ano de Publicação: 2005
Local: Lisboa
Editor: Edições Colibri

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