MARIA ESTELA GUEDES
A poesia na óptica da Óptica
Carlos de Oliveira, o microscopista
 
Estalactite
  I

O céu calcário
duma colina oca,
donde morosas gotas
de água ou de pedra
hão-de-cair
daqui a alguns milênios
e acordar
as tênues flores
nas corolas de cal
tão próximas de mim
que julgo ouvir,
filtrado pelo túnel
do tempo, da colina,
o orvalho num jardim.

 

II

Imaginar
o som do orvalho,
a lenta contracção
das pétalas,
o peso da água
a tal distância,
registar
nessa memória
ao contrário
o ritmo da pedra
dissolvida
quando poisa
gota a gota
nas flores antecipadas.

 

III

Se o poema
analisasse
a própria oscilação
interior,
cristalizasse
um outro movimento
mais subtil,
o da estrutura
em que se geram
milênios depois
estas imaginárias
flores calcárias,
acharia
o seu micro-rigor.

 

IV

Localizar
na frágil espessura
do tempo,
que a linguagem
pôs
em vibração
o ponto morto
onde a velocidade
se fractura
e aí
determinar
com exactidão
o foco
do silêncio.

 

VI

Algures
o poema sonha
o arquétipo
do voo
inutilmente
porque repete
apenas
o signo, o desenho
do Outono
aéreo
onde se perde a asa
quando vier
o instante
de voar

 

VIII

Caem
do céu calcário,
acordam flores
milénios depois,
rolam de verso
em verso
fechadas
como gotas,
e ouve-se
ao fim da página
um murmúrio
orvalhado.

 

XII

Registar
nessa memória
ao contrário
de trás
para diante
as palavras
que ficam
assim
misteriosas
e depois
soletrá-las
do fim
para
o princípio,

 

XIII

olhá-las
como imagens
no espelho
que as reflecte
de novo
compreensíveis
e tornar
a juntá-las
obsessivamente
ao ritmo da pedra
dissolvida
quando poisa
gota a gota
nas flores antecipadas,

 

XIV

perdê-las
.............a cal
entre {
.............e a água
espaço
de tensões obscuras
que passa
pelo cristal
esquivo
...............a cal
entre {
...............e a água
reavê-las
num grau de pureza

 

XV

extrema
insuportável,
quando
o poema
atinge
tal concentração
que transforma
a própria
lucidez
em energia
e explode
para sair
de si:

In: Micropaisagem

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