VIII COLÓQUIO INTERNACIONAL
Discursos e Práticas Alquímicas
Palácio Nacional de Mafra
Escola Prática de Infantaria
20-22 de Junho de 2008 . Mafra

O ELEMENTO SOLAR NA OBRA DE CLARICE LISPECTOR
DENISE FERRAZ

Denise Ferraz/Doutoramento/UNESP/São José do Rio Preto/ São Paulo/ Brasil/ Bolsista CAPES/PDEE/ na UM – Universidade do Minho/Braga/Portugal (1).

 

INDEX
Resumo
Introdução
O elemento solar no processo histórico
A terceira via
Notas
Referências bibliográficas

RESUMO

A proposta deste artigo é refletir sobre a presença do elemento solar em Clarice Lispector e, em específico, na obra “A maçã no escuro”. A hipótese é que há em Clarice Lispector um olhar outro, que diverge de uma proposta feminista ligada aos movimentos feministas de época, mas que, no entanto, retoma a questão do masculino e do feminino como central para a evolução da sociedade contemporânea de uma forma diferencial: homens e mulheres formam a simbiose necessária para que as utopias não morram, muito embora a redenção e o retorno ao paraíso perdido seja impossível.

INTRODUÇÃO

Clarice Lispector é autora de livros para adultos e para crianças. Considerada, junto com Guimarães Rosa e Machado de Assis, um dos grandes expoentes da literatura brasileira, nasce na Ucrânia, por acaso, e segue para o Brasil, com a família, devido à perseguição aos judeus, tendo morado durante anos no nordeste brasileiro, radicando-se, posteriormente, no Rio de Janeiro, local onde publica seu primeiro romance “Perto do coração selvagem”, em 1944. Embora de origem estrangeira, Lispector sempre se considerou brasileira (2).

Escritora controvertida, vista como hermética por seus leitores (3), e, no entanto, bastante lida pelas massas a partir da década de 1970, Lispector tem ampla fortuna crítica, pois sua obra, singular em seu amplo aspecto, estimula as mais variadas leituras que não se esgotam mesmo para seus leitores mais afortunados: aqueles que adentraram seu universo de criação com maior profundidade. Cabe-nos, portanto, diante da obra aberta que Clarice nos oferece, referenciar essas leituras como afirmação do frescor que sua literatura, ainda hoje, provoca no leitor que sempre encontra, apesar de sua intensa fortuna crítica, um ou outro aspecto de sua obra que ainda não foi invocado.

Quando penso no elemento solar em Clarice Lispector ocorre-me, de imediato, a leitura de um dos romances da autora, “A maçã no escuro” (2000) (4), e o personagem que protagoniza esse romance: Martim. Em “A maçã no escuro”, Martim, no primeiro plano da narrativa, faz a travessia do deserto até o encontro com o espaço de moradia, local onde chega ao acaso de um destino não determinado, mas que se determina no lance de dados que é o próprio ato de narrar.

A princípio não sabemos de onde vem e nem onde se encontra Martim. Não sabemos nem mesmo porque se encontra onde se encontra. É somente aos poucos, e se prestando muita atenção ao que diz o narrador, que os fatos tomam a forma de um desenho, ou seja, a composição dos motivos é revelada.

É no interior das personagens que os fatos revelam-se na narrativa de Clarice Lispector, muito embora não se possa dizer que seus romances estejam atrelados ao romance psicológico (5). Assim, a descrição narrativa serve como ancoragem, mas não determina o lugar, sempre dissimulado, de origem, ou de revelação do acontecimento.

O personagem, autor de um suposto crime, julgando-se assassino de sua mulher, após ter ateado fogo em sua casa, atravessa densa floresta em busca de sua identidade perdida porque rompeu com valores sociais que o aprisionavam, acabando por se alojar na fazenda dirigida por Vitória – que, no jogo de intrigas e ambivalências que se instaura na narrativa, rivaliza e disputa seu amor com a prima Ermelinda, a quem tiraniza assim como aos empregados que de si dependem.

Essa rivalidade surge como forma emblemática e simbólica da contraposição sempre presente entre o lunar e o solar que encena o discurso binário da sexualidade humana. Nesse sentido, o homem e a mulher, em campos de oposição, afirmam a diferença pela oposição sexual, que, no entanto, se apresenta paradoxalmente como plena de ambiguidades em Clarice Lispector, daí podermos dizer que é apenas aparentemente que a oposição entre o solar e o lunar centraliza os acontecimentos em “A maçã no escuro” (6).

O fato revelado – Martim pensa ter assassinado sua mulher – abre espaço para a representação do pacto literário e da cena que permite o vislumbre das relações humanas a perpetuarem o subjugo do humano pelo humano até que o ato de revolta se efetue: a mulher tirana, o homem subjugado, a mulher tiranizada, o homem que tiraniza, o homem que se deixa subjugar, a mulher que assume o lugar do homem ou vice-versa. Estas relações, em tensão, reenviam para a problemática do cenário que entorna a questão do humano como ser que procura a felicidade e que sempre se depara com a justiça, com o porvir e com a alteridade radical do inteiramente outro (7).

No limite, o jogo amoroso se traduz pelo deslocamento paradoxal dos sentimentos amorosos e pela sobreposição de gêneros: amor e ódio formam a constelação necessária para o desenlace das tensões organizadas, pois é necessariamente no limite que as relações humanas conjugam esperança e alegria, dor e tristeza, amargura e alento, utopia e distopia, no almejo, sempre presente no humano, de um mundo melhor.

E é pensando nessas relações que o objetivo deste trabalho aqui se desenha: tentar compreender como, a partir do jogo feminino e masculino, se instaura em Clarice Lispector um outro cenário que constitui o impasse entre esses dois elementos, a elaborarem, em si, a derrota e a promessa do eterno Eldorado perdido. É a partir dessa outra cena que pretende-se invocar a complexa relação que ocorre entre o lunar e o solar, o feminino e o masculino. É a partir dessa cena instituída que se pretende compreender a utopia e a distopia que comparecem na literatura de Clarice Lispector.

Pode-se pensar que essa cena se compõe e se recompõe como dupla face: reflete o cenário de um colóquio alquimista que preocupa-se em elencar o homem do novo mundo e sua utopia de progresso e alegria no fulgor da esperança de um mundo melhor para todos, e isto ocorrendo, de maneira bastante pertinente, justamente em um momento histórico ambivalente e que tem colocado em causa toda e qualquer ideia de progresso.

O ELEMENTO SOLAR NO PROCESSO HISTÓRICO

É dentro de um processo histórico que se firma a dominação da mulher pelo homem, pelo menos se considerarmos que o capital, na sua forma de usura e posse, é uma forma de gerência do dominante. O capital não sendo mais do que o fluir da posse e do poder do masculino. Mas não podemos esquecer que esta é uma afirmativa datada porque, indiscutivelmente, devemos mencionar que se há um falocentrismo centrado na sociedade patriarcal, este não está desassociado do matriarcado e do consentimento das relações contratuais existentes entre dominantes e dominados, se assim pretendermos polarizar, ainda que provisoriamente, as coisas.

Clarice Lispector, como mulher do seu tempo, viveu justamente uma época controvertida e polémica: o feminismo está no auge na década de 1960 e 1970, assim como as palavras de ordem: liberdade, paz e amor. Basta ler Simone de Beauvoir para compreender a força que à época tem a questão da mulher, da liberação sexual, da transmutação de valores e das ordens estabelecidas. O maio de 1968 sendo um dos exemplos mais frementes da história do desejo de liberação que agitou as mentes e o pensamento de toda uma época.  

E se as mulheres acham que queimar o sutiã pode resolver o problema da emancipação da mulher e tornar o universo feminino e masculino igualitário; para Lispector, destoando do feminismo de época, o problema adquire outras dimensões, estas, nem tão simples e tão fáceis de serem resolvidas historicamente, como se pode observar pela leitura de “A maçã no escuro”.

Quero crer que aqui se coloca um problema na leitura de Lispector e na leitura que proponho neste colóquio. Este problema me surge como hipótese e não como algo de fácil solução. Não me parece ser possível desvincular uma leitura binária da concepção do feminino, em sua obra, da possibilidade de uma terceira síntese, paradoxal, ambígua, controvertida e que hoje abre-se para o diálogo possível, o que não era tão fácil de ser empreendido no tempo vivido por Lispector.

Esta claro que trata-se de ambiguidades e paradoxos vivenciados historicamente tanto por homens, como por mulheres, de maneira bastante intempestiva. Remeto-me à leitura de “O segundo sexo” (8), de Simone de Beauvoir, e a uma outra autora, cujo vínculo com a escrita de Lispector já foi comentado pela crítica de época, desde o lançamento de “Perto do coração selvagem”: Virgínia Woolf.

São mulheres fortes que representaram, à sua época, o evolucionismo histórico da afirmação do feminino diante do apogeu do macho. Escritoras que afirmaram um nome, posto que, com menor ou maior prejuízo de suas identidades firmadas no feminino, estas mulheres confirmam um espírito de época, mesmo que intempestivo, embora haja distanciamento físico e formas de atuação pública e política diversas entre elas.

Beauvoir, por exemplo, em entrevista posterior à publicação de “O segundo sexo”, comenta sobre a complexidade de fatores que detonaram os impasses que hoje vivenciamos nas relações humanas e que, para ela, não estão distanciados dos valores históricos agregados, como o já observado sistema de gerência do capital que acumula poder econômico e faz com que prevaleça a divisão de classes e o predomínio do dominante (a burguesia ascendente) sobre o dominado (o proletariado).

Há, como se pode perceber, limites para essa interpretação, pois, nesse sentido, é só dentro de um paradigma de classe, elaborado pelo marxismo, que se pode pensar na mulher e no homem subjugados pelo outro ou pelo inteiramente outro do outro: a dominação de uma classe pela outra sendo um dos aspectos dessas formas de dominação e não a única possível. O que leva ao extremo e ao limite o pensar as relações de força que solapam a liberdade individual de homens e mulheres diante da diversidade de formas de opressão que sofrem quando imersos na grande máquina do mundo, o que tem reflexo nas relações familiares e sociais.

Segundo Beauvoir, no entanto, homens e mulheres se deparam com a força da engrenagem que move o sistema capitalista e a libertação só pode ocorrer a partir do trabalho revolucionário ou após a passagem para o socialismo ou comunismo. Foi isto que ocorreu? Basta retomarmos a utopia de época e o esfacelamento de valores que hoje presenciamos com um certo desprazer e perguntarmo-nos o que nos governa e quais são nossas atuais esperanças para compreendermos que não.

Esta problemática comparece na literatura de Lispector em vários momentos e antecede a publicação de “A maçã no escuro”. Em “Perto do coração do coração selvagem”, por exemplo, Joana, a protagonista da história, tem personalidade marcante e está a todo momento se defrontando com o universo masculino aterrador e do qual tenta se libertar e liberar como mulher que busca sua autonomia e felicidade, não sem antes passar por todas as buscas e ansiedades que toda libertação e ruptura com valores estabelecidos provoca, passagem necessária para que chegue bem perto do selvagem coração da vida.

Já, posteriormente, trabalhando como cronista em uma redação de jornal, Clarice Lispector retoma o problema, elaborando a perspectiva do ponto de vista da mulher escritora e a partir de um texto de Virgínia Woolf (9). Hoje, a leitura desse texto pode ser observada como anedota mórbida e irônica, no entanto, se nos afigura como centralizadora da problemática feminina em inserção no universo masculino predominante, ainda que optemos por deslocar a questão para uma terceira via proposta por Lispector, o que aqui intentamos elaborar.  

De forma travessa, Lispector comenta crônica de Woolf que tem como centro argumentativo a pergunta e a resposta: e se Shakespeare fosse mulher? A resposta: ele se mataria. A ideia, transposta como anedota, é que Shakespeare teria uma irmã escritora e que está, por razões de gênero sexual, estaria restrita ao universo feminino das prendas domésticas, sofrendo toda sorte de admoestações por essa razão. Tendo, entretanto, o espírito e o chamado vocacional para escrever, e sendo tão genial quanto Shakespeare, o homem, não chega a se realizar como pessoa humana, por razões óbvias. Abortada, esta mulher com espírito masculino, em essência, suicida-se (não é preciso lembrar que este é o fim de Virgínia Woolf).

A TERCEIRA VIA

Em “Rumo à Eva do futuro: A mulher no romance de Clarice Lispector”, Oliveira (10) mapeia o lugar da mulher na obra clariceana. Esse mapeamento revela a face obscura das relações humanas, em especial do homem e da mulher, quando se deparam com o diálogo frágil do espírito feito carne: a palavra encarnada e como encarnação do poder. Jogo duplo e composto por muitas faces. Quem domina e quem é dominado? A quem se outorga poder? E até que ponto dominantes e dominados se entrelaçam na mesma cena?

Para Oliveira, a figura da centaura, a mulher que cavalga e se une ao animal como forma e corpo, que a teórica vê como bem representada na personagem Vitória (proprietária da fazenda na qual Martim se instala após sua peregrinação pela floresta), representa a transfiguração do feminino no masculino ou, no melhor dos casos, uma junção do feminino e do masculino, mas, em Vitória, há uma passagem inversa, não observada pela teórica – ela é a mulher com espírito de homem, e é pela negatividade que esta passagem se realiza, muito embora se mantenha a perspectiva ambivalente e paradoxal que rejeita o pensamento binário e exclusivo do feminino e do masculino, do bem e do mal, do ódio e do amor, para melhor deslocar-se o problema e provocar a descentralização dos valores estabelecidos.

A mulher Vitória carrega o peso da perda do feminino, que não se dá sem a dor provocada pelo abafamento dos sentidos e do desejo. O que a contrapõe, como personagem, com a perspectiva de Martim, que, ao contrário, faz o movimento inverso: ele se liberta do peso cultural de ser o homem ao conjugar as forças do masculino e do feminino, em processo de junção e transmutação da sensibilidade e do conceitual cultural que temos do homem, e, assim poder fecundar a humanidade: gestão e maturação, pois Martim sente, metaforicamente, a grande dor do parto e do renascimento do mundo (11).

 A visão que se instaura e que apreende-se em “A maçã no escuro” é, ao contrário do que ocorre em contos da autora, a da mulher que contracena com o homem em posição de mando, no entanto, o que transparece na narrativa é uma negação do poder, seja ele efetuado pelo masculino ou pelo feminino. Martim, no caso, supostamente subjugado, porque fora da lei e do mando, agora liberto de uma força dominante (cometeu um crime, o justo crime de matar a mulher), aparentemente vê-se amealhado por uma outra mulher que exerce seu poder de mando justamente onde pensa sentir a fraqueza do macho, com uma ressalva, Martim já não é o homem aculturado pelos valores sociais e dominado pelas forças da sociedade falocêntrica porque, nele, o processo de devir e fluição se instaura.

Não fosse a escritora Clarice Lispector, as relações de forças contracenariam com o pensar binário e centralizador do falocentrismo, em razão mesmo desse narrar estar centrado na mulher que assume o controle a partir do momento que tem autonomia financeira e que, portanto, assume os valores impostos pela sociedade falocêntrica. Uma análise mais detalhada da estrutura narrativa pode desconfigurar, como se irá perceber, nossa percepção da estrutura falocêntrica inerente, culturalmente, ao homem. O romance está dividido em três partes que assim são intituladas: como se faz um homem, nascimento do herói e a maçã no escuro.

Esta divisão, em partes, pela própria temática desenvolvida, remete, sem dúvida, como afirma Ribeiro, para o romance de formação ou de aprendizagem, que, embora se estabeleça dentro da tradição, o faz para melhor romper com a própria tradição. O primeiro aspecto a considerar como provocador da desestabilização dessas relações de força é o fato de Martim ser, ao mesmo tempo, o herói e o anti-herói da narrativa. Perversão sempre presente no desenvolvimento do enredo.

O romance, pontiagudo, escrito no limite da linguagem, não permite o perdão. Não há perdão nesse ato de conhecimento que remete ao emblema do homem e da mulher e da queda do humano no Éden, pois, nesse romance, é da queda e da problemática da redenção e da busca do paraíso perdido que se trata, além da própria problemática da narrativa e do narrar que ali comparece, o que, portanto, nos autoriza a pensar na utopia e na distopia do presente como formas que contornam “A maçã no escuro” e a própria literatura e o seu fazer-se como obra criadora.

Martim, simbolicamente, é o homem que desiste do poder e experimenta, na dor, o pleno conhecimento, aquele que só alcançamos quando compreendemos e aceitamos o mal e o bem, tão presentes no espírito do homem, não mais como forças antagônicas, mas sim como presenças categóricas e inerentes à sua essência e existência. É diante da luminosidade do sol que tanto queima como ilumina o ser de Martim – em uma das passagens, quando se encontra em plena floresta, o personagem sente a luminosidade do sol em sua face - que o homem Martim torna-se o ser andrógino (12), o criador de universos, o demiurgo e o homem profano e singular, mas, para sempre, o homem sem qualidades, o anti-herói tornado herói.

Às voltas com o elemento lunar, ou seja, a mulher na sua forma bipolar de santidade e de serpente, de louca e de sã, de sombra e de claridade (são três as mulheres que, em sua fuga, após a suposta morte de sua mulher, Martim encontra), o personagem desenvolve longo percurso até deparar-se com sua natureza humana inaugural.

Substancialmente, podemos observar que é por essa razão que o personagem atravessa o deserto, esquecido de sua origem e de sua forma primordial, metamorfoseando-se em devires animal (13): ora é o rato, ora é o tigre voraz, ora é o pássaro, ora é o minério, ora é a pedra, ora é a serpente. Essas mutações formam figuras e emblemas: Martim é o rato quando se ri dos ganhos que percebeu em seu outro mundo, o que antecede a travessia pelo deserto e a escalada pela montanha, enganando um amigo (14). Martim é pássaro quando acede à libertação. Martim é serpente quando chega ao saber. Martim é minério quando conversa com as pedras. Martim é o homem virginal em sua alquimia pelo selvagem mundo da vida até que se torne plenamente homem. Martim é planta quando renasce da terra e a frutifica. Martim é mulher e fêmea quando humanizado e é homem porque extraído de sua humanidade e por, ainda assim, permanecer e ser ancestral do próprio homem e da sua condição humana.

É preciso considerar que Martim, nessa longa passagem por montanhas e planícies, está despido de sua linguagem e da capacidade de pensar o pensamento. No entanto, escalando a montanha e dialogando com o mineral (as pedras), ele é o pensador da essência, assumindo uma espécie de peregrinação muito semelhante à de um filósofo e remetendo, de imediato e a princípio, para o Cristo Redentor pregando o Sermão na Montanha. Soma-se, então, ao homem Martim, o Cristo pregador, ou aquele que configura o fulgor do espírito renovado, o messias que promete a renovação do espírito.

Pode-se dizer: Martim é o homem que libera o verbo e se obriga o recomeço e a origem e, nesse aspecto, o romance de Lispector propõe-se inaugurar a literatura como eterno trânsito e recriação do mundo que nos cerca. E a pensar dessa forma, pode-se afirmar que Clarice está como a dizer: toda obra é recomeço. Toda obra é esforço de criação e fundação, ou seja, toda obra é pedra e é origem e se funda no domingo, na sua própria força de origem, toda a literatura, se assim quisermos, é forma de transmutação alquímica.

O retorno à origem e à natureza virginal é necessário para a libertação do espírito e do corpo do homem. É diante da mutação e da travessia (da palavra) pelo mais puro deserto, no sermão das pedras, que Martim, deixando sua casca cultural ser dizimada pelo novo estado de alerta que sente, perde a linguagem para poder, assim, retomar sua forma humana no mundo, despindo-se do pensamento binário e cartesiano e constituindo-se como homem do novo mundo: o paraíso, não sendo reencontrado, é dotado da alquímica revelação da natureza, é transmutação (15).

Sua nova linguagem deve traduzir sua experiência de libertação e renovação após a grande queda e o abismal encontro com sua liberdade figurada no pássaro que morre amordaçado em suas mãos e que, porventura, metamorfoseia-se na fêmea (16).

É a mulher que Martim esmaga em suas mãos, sem querer, em seu delírio, mas para que a morte seja transformação: as cinzas (que remete ao incêndio da casa) e à morte da mulher, transmuta o homem em andrógino – macho e fêmea, no auge do aguçar da sensibilidade primordial do animal que, tanto está em fuga, como permanece em transe, ao buscar sua libertação pelo conhecimento primevo.  

A “maçã”, não se pode esquecer, está no escuro. É nas trevas e atravessando as trevas que se encontra a possibilidade de redenção, entretanto, qual esperança e qual redenção é permitida ao homem que atravessa o tempo tornando-se ancestral de si mesmo ao aprender a linguagem das pedras, dos minerais, da suprema natureza e tendo que se deparar a todo instante com sua estranha metamorfose de origem animal e de bicho sordidamente aculturado e adestrado pelo pensamento, domado e estratificado pela cultura humana supostamente considerada como progresso? Perder a linguagem, abismar, percorrer os labirintos desse abismo feito de dor e de alegria será a forma que temos para fazer do homem, homem e da obra, obra?

Pensar a terceira via, somando-se ao solar o lunar para edificar a possibilidade de um terceiro elemento, significa redimensionar a problemática e colocar-se o impasse da não resposta que se abre na narrativa de Clarice Lispector. Como proposta de leitura, esse terceiro elemento se dá diante da ruptura e da transcendência de valores encenados, tanto por Martim, como por Vitória, e tendo como elemento de intermediação as figuras de Ermelinda, de Francisco, da empregada, do filho e da própria mulher de Martim, esta, oculta nas imprecisas cinzas de uma morte que não ocorreu.

É por amor que se mata, se pensarmos no homem e na mulher e na grande ferida aberta após a queda do paraíso. É também por amor que se faz preciso e urgente retomar o sonho de um mundo melhor onde os morangos não estejam mofados. E é pela dor que se faz a travessia para a alegria libertária. Um mundo em por vir. Um mundo no porvir e na travessia, pela esperança frágil e delicada que nos dá o sonhar. Uma maçã no escuro.

NOTAS

(1) Agradecimentos especiais a Marcos Antônio Siscar, meu orientador no Brasil e a Carlos Mendes de Sousa, co-orientador em Portugal, pelo estágio oferecido a mim na Universidade do Minho/Braga; à Estela Guedes pelo convite para participar do “XVIII Colóquio Internacional Discursos e Práticas alquímicas”; à CAPES pelo oferecimento da Bolsa CAPES/PDEE que me proporcionou condições para vir para Portugal e às bibliotecárias do Centro de Estudos Humanísticos da referida Universidade do Minho.

(2) A autora assim se refere ao fato de ter nascido no estrangeiro: "Sou brasileira naturalizada, quando, por uma questão de meses, poderia ser brasileira nata. Fiz da língua portuguesa a minha vida interior, o meu pensamento mais íntimo, usei-a para palavras de amor. Comecei a escrever pequenos contos logo que me alfabetizaram, e escrevi-os em português, é claro. Criei-me em Recife".

(3) Sobre seu hermetismo, Clarice Lispector comenta: "Me chamam de hermética. Como é que se pode ser popular, sendo hermética? Eu me compreendo. De modo que eu não sou hermética para mim".

(4) A “Maçã no escuro”, romance publicado em 1961, recebeu o Prêmio Carmen Dolores Barbosa de Literatura. No presente artigo, utilizamos a edição portuguesa publicada pela Editora Relógio D`água, 2000.

(5) Para Carlos Mendes Sousa, Lispector se depara constantemente com a interrogação do que se é e, embora a questão apresente-se com clareza, é diante da complexidade que sua formulação ocorre, pois há em Clarice uma “pronta negação do racionalismo”. Outrossim, como afirma o teórico, há em sua narrativa uma apreensão do dentro e do fora. “O fora sendo “vertiginosamente apreendido como um dentro aprisionador”  (2004; p. 178 - 9).

(6) Não por acaso, Helène Cixous, na leitura que faz de Clarice em “A hora de Clarice Lispector”, dobrando sua linguagem sobre a escrita de Clarice Lispector, metaforiza “A maçã no escuro” como título de seu livro, referenciando o feminino e o masculino ali presentes, numa leitura que se aproxima da que propomos: homens e mulheres almejam a libertação. Qual a via de ascensão?

(7) Eu me refiro ao que Jacques Derrida coloca como problema de justiça em “O gosto do segredo”. Para o filósofo, pensar a justiça é pensar a alteridade radical, o inteiramente outro e sua singularidade. (2006; p. 37)

(8) “O segundo sexo”, publicado em 1949, foi considerado um dos livros mais contundentes sobre a questão da mulher.

(9) Clarice Lispector comenta o texto de Virginia Woolf quando trabalha no jornal “O comício”, em 1952, assinando com o pseudônimo de Teresa Quadros, em crônica da época. É por essa época que escreve “A maçã no escuro”. O texto referido foi republicado em obra póstuma recentemente organizada. Cf.: Clarice Lispector. Outros escritos (Rocco, 2005; p. 91).

(10) Oliveira; Solange Ribeiro. Rumo à Eva do futuro: A mulher no romance de Clarice Lispector. Revista Remate de Males, Campinas/UNICAMP, (9): 95-105, 1989.

(11) Esta possibilidade pode ser demonstrada na seguinte passagem do romance:”Até que, afortunadamente, percebeu que a criação do mundo estava lhe dando cólicas. Então, feliz de enfim poder se submeter a uma dor, deitou-se sobre a barriga e, com o calor do contacto, começou a adormecer” (2000; p. 187).

(12) Cito:”E em breve, com a sequência dos passos, de novo o gosto físico de estar andando começou a tomá-lo, e também um prazer mal discernido como se ele tivesse ingerido uma droga afrodisíaca que o fizesse querer não uma mulher, mas responder ao tremor do sol”. Este “tremor do sol” pode ser compreendido tanto como busca do falo (do masculino), como pela busca do conhecimento, ainda centrado no falo, concepção que se desfaz ao se partir do movimento de negação do racionalismo cartesiano que o personagem realiza (2000; p. 29).

(13) Refiro-me ao conceito de Devir e Fluição em Deleuze & Guattari (Mil Platôs e em O anti-Édipo, 2000 e 2004, respectivamente).

(14) Assim se descreve Martim na cena em que se dá o seu monólogo com as pedras: “(…) inteligência grosseira e esperta como de um rato” (cf. p. 49). Em outra passagem: “(…) guiava-o a suavidade dos brutos, a mesma que faz com que um bicho ande e bonito” (p. 25).

(15) Cito: “E sob o sol amarelo, sentado numa pedra, sem a menor garantia – o homem agora se rejubilava como se não compreender fosse uma criação. Essa cautela que uma pessoa tem de transformar a coisa em algo comparável e não abordável, e, só a partir desse momento de segurança, olha e se permite ver porque felizmente já será tarde demais para não compreender – essa precaução Martim perdera. E não compreender estava de súbito lhe dando o mundo inteiro” (2000; p. 35).

(16) “O pássaro tremia todo na concha da mão sem ousar piar. O homem olhou com uma curiosidade grosseira e indiscreta a coisa na sua mão como se tivesse aprisionado um punhado de asas vivas. Aos poucos o pequeno corpo dominado deixou de tremer e os olhos miúdos se fecharam com uma doçura de fêmea” (2000; p. 29).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

LISPECTOR, Clarice. “A maçã no escuro”. Ed. Relógio D`Água: Lisboa, 2000.

---------. “Clarice Lispector. Outros escritos”. Org. de Teresa Monteiro e Lícia Manzo. Ed. Rocco: Rio de Janeiro, 2005.

DERRIDA, Jacques; FERRARIS, Maurizio. “O gosto do segredo”. Trad. Miguel Serras Pereira. Ed. Fim de Século: Portugal, 2006.

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. “O anti-Édipo”. Trad. de Joana Moraes e Manuel Maria Carrilho. Ed. Assirio & Alvim: Portugal, 2004.

PONTIERI, Regina (org). “Leitores e leituras de Clarice Lispector. Ed. Hedra: USP, 2004.

OLIVEIRA, Solange Ribeiro. “Rumo à Eva do futuro: A mulher no romance de Clarice Lispector”. Revista Remate de Males, Campinas/UNICAMP, (9): 95-105, 1989.

 

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