VIII COLÓQUIO INTERNACIONAL
Discursos e Práticas Alquímicas
Palácio Nacional de Mafra
Escola Prática de Infantaria
20-21 de Junho de 2008 . Mafra

Do «ousiarca» divino da tradição hermética ao
Princípio Antrópico da Cosmologia moderna
A.M.Amorim da Costa

Dept. Química – FCTUC . Universidade de Coimbra

1.Os ousídeos de deus

Entre os quinze tratados atribuídos à mítica figura de Hermes Trismegisto, o três vezes grande, Filósofo, Príncipe e Poeta, que constituem os textos básicos de toda a tradição hermética, compendiados no Corpus Hermeticum [1], encontra-se o Asclépio ou Sermão Perfeito [2], o livro sagrado dirigido por Hermes ao neófito Asclépio a quem trata como seu filho e considera ser o “seu sol”. Todo o discurso está centrado na natureza da obra do Criador, “no Todo que é Uno e no Uno que é Todo, posto que todas as coisas estavam no Criador antes de serem criadas” [3]. O Mundo é um só, como um só é Deus e uma só é a Alma” [4]. Referindo-se ao Homem, diz ser este “um grande milagre e uma grande maravilha, um ser vivo digno de reverência e de honra, cuja natureza quase se pode converter na natureza de um deus, como se ele próprio fora um deus” [5] . Continuando o seu discurso sobre a natureza divina do ser humano, Hermes refere a Asclépio a existência de duas categorias de deuses: os deuses que são Príncipes de todas as ousias (= formas ou realidades sensíveis) e os deuses que são apenas Príncipes desta ou daquela forma sensível. Os primeiros podem operar incondicionalmente sobre todas as coisas; os segundos só podem operar sobre a forma sensível de que são Príncipes, no quadro geral das leis naturais. Referindo-se aos deuses desta segunda categoria trata-os como os ousídeos divinos e dá-lhes o nome de ousiarcas. E exemplifica: o Céu é o deus sensível que administra todos os corpos, cujo crescimento e diminuição dependem do Sol e da Lua. O ousiarca deste deus é Júpiter, o responsável pela vida que no mesmo existe; do mesmo modo, a luz é o ousiarca do Sol pois é através da coroa do Sol que os benefícios da luz se derramam sobre todos nós [6].

É neste contexto que analisa e se refere à natureza do ser humano. Parte da sua natureza é comum à natureza dos deuses e, por disposição divina, em sua natureza abraça pelo amor todas as criaturas feitas pelos deuses; no mundo em que foi posto por deus, ocupa a feliz posição de mediador entre o que está abaixo e o que está acima dele, outorgando amor ao que lhe é inferior e sendo amado pelo que lhe é superior; pela velocidade de sua mente cultiva a terra e confunde-se com os seus elementos, e desce às profundidades dos mares pela penetração de seu espírito. Por seu poder, tudo alcança. O Céu não é para ele demasiado alto pois a sua sagacidade permite-lhe medi-lo como se o tivesse nas suas mãos; nenhuma bruma do mar é capaz de obscurecer a atenção de seu espírito; está, ao mesmo tempo, em todas as coisas e em todas as partes. Pela sua mente, ele é o único ser criado capaz de se elevar e chegar ao conhecimento do nome de deus. Ele é o único ser vivo duplo: uma das suas partes goza daquela simplicidade que os gregos designam por ousiodes, a "figura da semelhança divina”, enquanto a outra é a matéria de que é feito o corpo, o hylikon dos mesmos gregos. É por tudo isto que ele é um ousídeo divino. Configurado com deus, ele é um dos seus ousiarcas [7]. Na hierarquia divina, o seu lugar é o terceiro: o Senhor da Eternidade é o primeiro; o Mundo é o segundo e o Homem é o terceiro [8] .

Ousiarca de Deus, pela sua natureza podemos conhecer a natureza do próprio Deus; ele é sua imagem e seu semelhante. O deus supremo que tudo criou conferiu a seus ousiarcas a eternidade para que fossem semelhantes a ele, e é por isso que a humanidade configura os seus deuses à semelhança de seu próprio rosto.

Neste quadro de ensinamentos de Hermes dirigidos a Asclépio, impõe-se-nos trazer à colação muitas outras narrativas que se referem ao Homem em termos idênticos. Tal como o Homem do Asclépio, também o Homem do relato bíblico do Povo Judeu e o Homem de muitos outros relatos que encontramos em muitas e variadas mitologias, foi criado por Deus à sua imagem e semelhança. O relato bíblico do Povo Judeu, aquele que mais influenciou a chamada cultura da Europa cristã, refere que depois de ter criado os céus e a terra, a luz, a água, as árvores, as estrelas, os peixes, as aves e todos os animais, Deus criou o Homem à sua imagem e o fez à sua semelhança, homem e mulher, Adão e Eva, macho e fêmea [9].

Imagem de Deus e seu semelhante, o Homem, ao olhar-se como ousiarca divino, na tentativa de compreender a sua própria natureza, não pode deixar de se perguntar: mas que Deus foi este que assim me fez? E lendo o relato bíblico vê-se a si-próprio reflectido do outro lado do espelho [10]: um deus cansado que no fim dos seis dias durante os quais criou os céus e a terra, a luz e todos os demais seres, ao sétimo dia, descansou; um deus que ao ver a maldade do homem multiplicar-se sobre a terra, se irou e arrependeu de o ter criado; um deus que apaziguado com o castigo do dilúvio que infligiu ao homem pela maldade em que caíra, reata com ele a sua amizade, selada com o arco da aliança, afirmando-lhe, uma vez mais, ser ele feito à sua imagem e prometendo-lhe que o não voltaria a castigar tão duramente; um deus que se passeia em Sinear para ver in loco a torre que os seus habitantes andavam a construir para que do seu cume pudessem tocar os céus, e que ao vê-lo, ali mesmo se irou e lhes confundiu as línguas. E de imediato se interroga: mas foi este deus que me fez ou fui eu que o fiz servindo-me de mim mesmo como molde adequado? Frente ao espelho, qual o lado da imagem e qual o lado do objecto?

E a pergunta repete-se séculos a fio, a ponto de se tornar clássica e sem novidade, aventando que não foi Deus quem criou o Homem, mas foi o Homem quem criou Deus. Nas religiões politeístas existem deuses com todas as virtudes, mas também com todos os vícios e pecados, necessidades e medos, desejos e ansiedades dos homens que neles crêem com a mais ardente fé e veneram com o mais reverente servilismo no quadro de arrevesados cultos. Um deus para cada ousia. Racionalmente, nenhum de nós tem argumentos apodícticos para defender que foi o Deus cuja existência aceitamos ou discutimos com base em convicções profundas duma fé que nele crê que nos criou à sua imagem, ou se fomos nós que o criámos e que numa acção do mais puro antropomorfismo, moldamos à nossa imagem.

Um deus criado pelo homem e por este antropomorficamente moldado identificar-se-á com toda a naturalidade, numa Mente Suprema, no Supremo e Eterno Bem, no Pai e na Mãe Universais, a visão hermética e panteísta da entidade divina, o Uno que é o Todo e o Todo que é o Uno, o Ser Hermafrodita e Andrógino que em si possui, em iguais quantidades, as qualidades do masculino e do feminino, de Adão e Eva, do macho e da fêmea. O Deus que tudo criou, que é o Uno e o Tudo de quanto existe, goza da fecundidade total de ambos os sexos; e como ele também todos os seus ousiarcas e todos os seres animados. Para que não chegue o tempo em que todos estes seres deixem de poder ser o que sempre foram, é necessário que a Mente, a Natureza e o Mundo sejam por sua mesma essência hermafroditas [8].

O deus que fez o mundo e o governa fez do Homem um ousiarca divino, constituido em seu adjunto privilegiado, como um microcosmos que é a imagem perfeita do macrocosmos que também criou. De natureza divina, o Homem, ousiarca divino é, por isso mesmo, centro, rei e senhor de toda a Natureza, num encontro de perfeição e permanência constantes.

2. O encontro do Homem com a Natureza

Adjunto privilegiado do Deus que criou todas as coisas e por ele encarregado de tomar conta delas, cabe ao Homem enquanto ousiarca divino assegurar que o cosmos (o macro e o micro) mantenha em toda a sua evolução o seu ordenamento natural . No seu todo, micro e macrocosmos, o Mundo tem como seu lugar próprio a vivacidade da eternidade pelo que jamais será destruído e é fonte perene da vida de todas as coisas que o compõem. Este é o ordenamento natural que deverá preservar [11] .

Só o poderá fazer conhecendo bem as coisas de que se pode servir e aquelas a que deve prestar serviços, louvando e dando graças a Deus e venerando a sua imagem que é o mundo e o próprio homem, um e outro com uma e mesma origem, a mais pura e límpida parte da Natureza [12].

Para bem cumprir esta sua missão de ousiarca divino, o Homem deve conhecer-se a si-mesmo e conhecer o macrocosmos de que é a imagem perfeita pois só assim saberá de que coisas se pode servir e a que coisas deverá prestar serviços, louvando e dando graças a Deus e venerando a sua imagem que é o mundo e o próprio homem [13].

Dada, porém, a origem comum do Homem e do Cosmos, o conhecimento de que o Homem precisa para bem cumprir a sua missão de ousiarca é-lhe imanente, e todos os dias se realiza num encontro permanente a que não tem sequer possibilidade de escapar. Encontramos, ao longo dos séculos, diferentes registos deste encontro. O registo alquímico é, todavia, aquele que melhor traduz a relação do Homem com a Natureza numa relação próxima da missão referida nos ensinamentos de Hermes a Asclépio. Pelo seu carácter alquímico, seja-nos permitido deixar aqui uma menção explícita a dois encontros específicos do Homem com a Natureza, pelos caracteres de grande oposição com que um e outro são apresentados: o encontro do alquimista com a Nuda Natura a que se refere o poema La Complainte de Nature de Jean Perréal e o encontro de Enodato com a Imperatriz que vivia numa “Quinta que era a quinta-essência de todas as Quintas” referido por Anselmo Munhòs de Avreu na sua obra Ennaeaou Applicação do Entendimento sobre a Pedra philosophal.

No seu poemaLa Complainte de Nature, Jean Perréal (1455-1530) descreve um encontro dum alquimista errante com a Natureza Despida, a Nuda Natura. È um encontro em que a Natureza para além de se apresentar despida, sem quaisquer adornos e sem quaisquer marcas de soberana, se queixa e desabafa, lavada em prantos, toda a sua dor, por ver que o homem usa apenas a arte mecânica para exprimir o conhecimento que dela possui, esquecendo-se de que ela é a sua própria mãe, criada por Deus antes de ter criado os anjos, o mesmo deus que dela se serviu para criar por suas próprias mãos, à sua semelhança e verdadeira imagem, o género humano. Sentindo que o Homem dela se afastou, a Natureza pede-lhe que volte a senti-la e ouvir, que nela se volte a incorporar, voltando ao passado remoto em que dela fazia parte integral.

Numa tentativa de redimir a atitude de esquecimento e de incumprimento da missão confiada ao Homem no trato devido à Natureza, o alquimista ajoelha aos pés dela, ouve-lhe todas as queixas, e, de imediato a reconhece como a mais perfeita das criaturas, ali mesmo lhe prestando todas as honras e louvores [14].





Fig.1
– O lamento da natureza ao Alquimista Errante: ilustração do poema de Jean Perréal, 1516

O encontro de Enodato com a Natureza, na figura de “huma Senhora muito sábia, e uma poderosa Emperatriz” narrado por Anselmo Munhòs de Avreu, no Diálogo III da Parte II do seu livro Ennaeaou applicação do entendimento sobre a Pedra philosophal, publicado em 1733, é um encontro em que o Homem, na figura de um alquimista que procura os segredos da Pedra Filosofal, é levado pelas mãos dum Filósofo que é ministro da Natureza, à presença de “huma Senhora muito sábia, e tão poderosa Emperatriz que domina o Mundo todo”, a viver numa grande Quinta que era a quinta- essência de todas as quintas”. Sem ser a Santíssima Trindade como Enodato foi levado a pensar quando o Filósofo lhe falou da sua existência e de todo o poder e sabedoria de que ela dispunha, ela era a própria Natureza, a quem todas as criaturas deviam obediência como a Mãe que era de todas elas e pelo amor com que a todas elas amava. Os seus mistérios eram os mistérios do poder do próprio Homem a quem cabia iniciá-lo na sabedoria do próprio Deus. Os seus segredos eram os segredos da Filosofia cujos frutos a Imperatriz nunca negava a qualquer dos seus súbditos que a procurassem, mas sem os quais o Homem não conseguiria nunca exercer cabalmente o seu poder sobre as criaturas a quem competia servi-lo.

Também neste encontro, o alquimista se ajoelha aos pés da Natureza, não para a ouvir queixar-se de qualquer esquecimento a que ele a tivesse votado, mas antes para receber das mãos dela o poder que precisava para a sua acção. Ajoelhou-se aos pés dela para ser por ela abençoado, numa bênção que lhe conferia o poder de que se sentia carenciado para cumprir e ir por diante com sua missão. Abençoado, logo se achou na plenitude de suas faculdades de vida e acção, regressando de imediato à presença do Filósofo para concretizar os conhecimentos que a Imperatriz lhe infundira [15-16].

A comunhão íntima do Homem com a Natureza, servindo-a e dela se servindo, tem a sua expressão máxima na afirmação do seu ser como réplica e miniatura do Grande Universo, consagrada na analogia dos alquimistas microcosmos/macrocosmos, cuja origem podemos assentar nas palavras com que é referida a Unidade de todo o cosmos que encabeçam o discurso da Tábua Esmeralda, atribuída também a Hermes Trismegisto: ”é verdade, sem mentira, certo e muito verdadeiro.

O que está em baixo é como o que está em cima e o que está em cima é como o que está em baixo, para se cumprir o milagre da unidade” [17]. O que está em cima é o Macrocosmos, o que está em baixo, o Microcosmos, o Homem. Um mais o outro são a Natureza na sua plenitude, cujo governo foi entregue a uma das partes, o próprio Homem. O homem representa todo o Universo e nele está consciente. Por oposição ao macrocosmo, ele é o Universo do ponto de vista pessoal e subjectivo; nele se encontram o universal e o particular, na forma do que é contido e na forma do que contém.

Numa palavra, o microcosmo é o mundo do homem consciente de si num mundo que é ele próprio a medida do homem.

Desta relação do microcosmos com o macrocosmos, um no centro do outro e ambos constituídos pelos mesmos elementos, numa réplica perfeita, decorrem os poderes que a Natureza em si encerra e os poderes que o Homem sobre ela exerce, a nível material e a nível espiritual, pela centralidade cósmica de que goza e pela mediação entre o criado e o in-criado que lhe foi conferida. A analogia harmoniosa existente entre o microcosmos e o macrocosmos permite ainda estabelecer no homem três modos de existir. Ao mundo material corresponde o seu corpo; ao mundo psíquico, a sua alma; e ao mundo espiritual, o seu espírito.

Esta divisão ternária do microcosmo afirmada na tríade espírito, alma e corpo (o noûs, a psyqué e o soma dos gregos; o spiritus, a anima e o corpus dos latinos), que encontramos nos ensinamentos de Hermes, e, de um modo ou outro, em muitos e diferentes sistemas filosóficos de toda a Antiguidade, não só no Ocidente, como também nas culturas Orientais, é a tríade do Evangelho Joanino, o Verbo, a Luz e a Vida.

Das três, a Luz é a mais subtil; mais que uma faculdade individual, ela é a faculdade universal do homem como homem, aquela que o caracteriza e afirma como verdadeiro ousiarca divino. É por ela que o Homem governa o Mundo; é por ela que o Homem pode servir-se e servir correctamente a Natureza, na sua missão de ousiarca a quem foi confiada a missão de governar o Cosmos.

Nela se resumem os ensinamentos de Hermes dirigindo-se a Asclépio ao falar-lhe do Homem como milagre da Natureza, um ser digno de toda a reverência e honra: ele é a Luz do Universo, essa luz que é ela mesma o ousiarca do Sol através de cuja coroa os benefícios da vida se derramam sobre todos nós [18].

Esta é a essência da visão do homem que encontramos nos grandes textos da tradição hermética, comum ao misticismo de muitas e das mais representativas tradições religiosas. Nela, o homem é o centro, rei e senhor da Natureza; sem ele esta não é compreensível, nem sustentável. A ciência experimental desenvolvida a partir, em particular, de Francis Bacon e de Newton, “caracterizada pela quantificação e pela utilização da abstracção matemática na descrição e na clarificação dos fenómenos naturais”, tornada, a partir da revolução científica dos séculos XVI-XVII, a ciência das academias e das sociedades científicas, pretendeu fazer dela tábua rasa, justificando o lamento da Nuda Natura de J. Perréal. Mas ela resistiu. Não se tornou definitivamente uma coisa do passado. No século XVIII, os textos alquímicos continuaram, de facto, a aparecer a um ritmo que rivalizava com o dos finais do século XVI e dos princípios do século XVII [19]. E hoje continua viva ao lado de cada um de nós, mesmo daqueles que mais fazem por ignorá-la. E tudo isto porque, consideremo-lo ou não um ousiarca divino, o Homem não deixou de ser para todos nós esse grande milagre da natureza, digno de toda a reverência e honra, referido por Hermes no livro sagrado que dirigiu a Asclépio.

3 - O Princípio Antrópico

O lugar de privilégio no Grande Universo que o Homem ocupa afirmado na tradição hermética e consagrado na analogia microcosmos/macrocosmos e também na sua afirmação de ousiarca divino, tornado chave da interpretação e requisito da continuidade da Natureza, conduz-nos ao chamado Princípio Antrópico, defendido e formulado, em 1973, pelo cosmologista Brandon Carter, ao celebrar-se o 500º aniversário do nascimento do fundador da astronomia moderna, N. Copérnico (1473-1543) [20]. Do misticismo e da crença alicerçados numa visão antropomórfica somos levados a uma especulação racional alicerçada em dados que fazem parte de um quadro estritamente científico. Racionalmente, todas as múltiplas e diferentes componentes do Universo, e o modo como se encontram articuladas, ao fim de milhões e milhões de anos de evolução, parecem indicar que toda a sua existência e governo se processaram com um objectivo bem definido e sempre presente: tornar possível a existência da vida, culminada na formação e existência do Homem como sua expressão máxima.

O Homem existe porque a evolução de todo o Universo se deu no sentido exacto de criar as condições que o tornaram possível e o impuseram como seu senhor e rei, para o bem e para o mal. Os valores precisos das diferentes constantes físicas e cosmológicas apontam nesse sentido. Os mais complexos cálculos parecem indicar com suficiente clareza e evidência devidamente fundamentada que dos muitos valores prováveis que essas constantes poderiam ter assumido, aqueles que se tornaram realmente efectivos são os únicos que no emaranhado do seu conjunto tornam viável a vida em geral e, no seu centro, a vida do homem, em particular, como seu cume e coroa, capaz de a compreender e de lhe dar sentido; capaz de a servir, dela se servindo.

Outros valores prováveis que essas constantes poderiam ter assumido deixam em aberto todas as especulações sobre a existência de outros mundos, na vastidão do Universo, com outros tipos de vida, com outros tipos de seres inteligentes capazes de servir e de se servirem das diferentes formas de vida em que se encontram mergulhados. Os valores efectivos que essas constantes assumiram, não parecem deixar-nos outras alternativas de vida e sua governação diferentes daquelas que são as deste microcosmos que é o Homem no interior do macrocosmos real em que está inserido. A vida humana encontra-se verdadeiramente no fio da navalha das escalas da sorte da sua própria existência, cuja lista de pré-requisitos é tudo menos breve. É de facto, muito extensa a lista de elementos e materiais constituídos a partir deles que entram na composição dos seres vivos como absolutamente indispensáveis, mesmo quando presentes em quantidades ínfimas; é de igual modo muito extensa a lista de materiais que à volta de cada ser vivo o inviabilizam se não evitados atempadamente, actuando como autênticos venenos mortíferos. São extremamente críticas as condições do campo gravitacional e das forças electromagnéticas em que a vida se gerou e se mantém. Num Universo cheio de cataclismos e acontecimentos naturais terrivelmente violentos, estão asseguradas as condições de sobrevivência da humanidade, mais ameaçada pelas suas próprias acções do que por esses cataclismos e acontecimentos naturais que na sua complexidade, no seu todo e à escala global parecem contribuir muito mais para melhorar a sobrevivência da vida do que a sua destruição irreparável. É que a vida na Terra não é estática; mais que prejudicada, na sua evolução dinâmica, ela parece sair favorecida do conjunto dessas incidências. A selecção natural e as mutações possíveis que a acompanham são a sua melhor garantia.

Os valores das constantes associados ao aparecimento e existência da vida em geral, e da vida humana, em particular, embora críticos, são possíveis dentro de limites que o referido tipo de cataclismos e acontecimentos naturais cuja natureza se nos depara como excessivamente violentos, não ultrapassam. Da margem de erro permitida parece poder inferir-se que o microcosmo, o telesma do mundo inteiro, formado a partir do Macrocosmo, que a já referida Tábua de Esmeralda refere como o cumprimento do milagre da Unidade, em que o Sol é o Pai; a Lua, a mãe; o Vento, quem o trouxe no ventre; e a Terra a ama que o acolheu. Ele não foi, nem é, fruto de mero acaso, mas antes o resultado imposto pelas condições que uma vez criadas impuseram a sua existência. O esquema desta existência é o esquema objectivo da evolução do próprio Macrocosmos. Fora deste, o microcosmo não tem qualquer sentido; mas também o macrocosmo seria desprovido de sentido se da sua resolução não tivesse resultado o microcosmo. Esta é a grande premissa do Princípio Antrópico de que decorre a natureza singular do próprio homem e a singularidade de excepção e grandeza do lugar que ocupa no seio do Universo [21]. Numa e noutra se cumpre verdadeiramente a centralidade do microcosmo no interior e seio do macrocosmo consubstanciada na crença e afirmação da mais pura e genuína das tradições hermética e alquímica.

Em termos duma Física Quântica, a afirmação desta singularidade, grande e verdadeiro milagre da natureza, digno de toda a reverência e honra, seríamos levados a concluir que só o nosso mundo existe “realmente”, com todas as demais regiões do super-espaço, um espaço de espaços, relegadas para uma categoria de “mundos falhados” por não passarem de potenciais alternativas ao mundo que realmente existe, o Mundo Humano, que a natureza “caprichosamente” rejeitou. Um Mundo Humano que o é não porque tenha sido o Homem a fazê-lo mas porque a natureza o fez para ser Humano. O Homem existe nele e habita-o porque nele se verificaram as condições que proporcionam a sua existência e estas condições proporcionaram essa existência porque o Homem nele surgiu e nele habita. Será sempre possível que nas regiões do super-espaço que referenciamos como a categoria dos “mundos falhados” para as quais foram relegadas as formas de vida que poderiam ter acontecido, mas não aconteceram, venha a dar-se o milagre da unidade referido pela Tábua de Esmeralda, na medida mesma em que a sua evolução as integre no microcosmos, no centro do macrocosmos; bastará que nelas se venham a criar as condições adequadas à existência da vida; quando se tornarem tais, serão parte do microcosmos; mas também só o serão quando o microcosmos nelas se encontrar.

Este é o Cosmos em que uma das suas partes essenciais é o microcosmos, o Homem.; este é o Cosmos da relação macrocosmos/microcosmos. Ele é certamente um Cosmos aberto a outras relações possíveis, incluindo relações em que o microcosmos–Homem seja materializado noutras formas possíveis de vida, incluindo formas de vida que nada tenham a ver com a vida deste microcosmos que é, hoje, o nosso; formas de vida, porventura até muito mais perfeitas e sublimes que a nossa. A vida é provavelmente uma energia electromagnética organizada, possivelmente na base de ligações químicas. Na Terra e no Homem a sua organização impôs-se e fez-se em torno de valores bem definidos e críticos dos parâmetros que caracterizam essa forma de energia. Mas tem que se admitir que outras formas de organização e de energia possam ser igualmente possíveis, e tão válidas, ou até mesmo mais válidas, que a vida terrestre e humana.

O Homem é o ousiarca divino com a missão de servir a Natureza e dela se servir, neste mundo vivo que é o seu, o mundo em que está e que é o que é porque ele-homem está nele. Nesta visão, concluiremos, com um excerto dos Pensamentos de Blaise Pascal (1623-1662): “pois, finalmente, o que é o Homem na Natureza? Um nada em relação ao infinito, um tudo em relação ao nada, um meio entre nada e tudo” [22].

Notas

[1] Estes tratados foram coligidos num só volume com o nome de CorpusHermeticum nos primeiros tempos da era cristã. A única cópia que chegou até nós foi a que pertenceu a Lourenço de Médicis, no século XV. A sua primeira tradução do grego para latim deve-se a Marsilio Ficino, Presidente da Academia Florentina, publicada em 1643.

[2] Hermes Trismegisto, Asclepius in Corpus Hermeticum,(ed. A. J. Festugière e A.D. Nock, Paris, 1944,Capítulos .XI-XIV, Liv.II).

[3] Hermes Trismegisto, Asclepio, Libro sagrado de Hermes Trismegisto dirigido a Asclépio in textos herméticos,www.servisur.com/cultural/hermes/asclepio.htm, nº1. Nota todas as referências que que aqui faremos a esta obra serão as do texto apresentado nesta colectânea de Textos Herméticos.

[4] Idem, nº3,

[5] Idem ,nº 6

[6] Idem, nº 19.

[7] Idem, nº7.

[8] Idem, nº10.

[9]Gen.I, 26-27.

[10] Gen.II, 2-3; VI, 5-6; ix,6-15; XI,1-6.

[11] Hermes Trimesgisto, Asclépio, nº 15.

[12] Idem, n os 10 e 7.

[13] Idem, nº 10.

[14] J. Perréal, La Complainte de Nature (Paris, 1516, Bibliothèque Sainte Geniève, ms 3220, fol. 1r-4v) cit in A. Vernet, Jean Perréal, poète et alchimiste, Bibliothèque d´Humanisme et Renaissance, 3 (1943), pp.214-252 .

[15] Anse lmo Caetano Munhòs de Avreu, Ennaeaou applicação do entendimento sobre a Pedra philosophal provada, e defendida com os mesmos argumentos com que os Reverendíssimos Padres Athanasio Kircher no seu Mundo Subterraneo, e Fr. Bento Hieronymo Feyjoo no seu Theatro Crítico, concedendo a possibilidade, negão, e impugnão a existencia deste raro e grande mysterio da Arte Magna. (Parte I : Lisboa Occidental, Officina Maurício Vicente de Almeida, 1732; Parte II, Lisboa Occidental, Nova Officina Maurício Vicente de Almeida, 1733) , Diálogo III, cp. Único, §8, pp.71-77 .

[16] A.M.Amorim da Costa, O Sonho Alquímico de Enodato e o Perfil do Filósofo Natural in VI Encontro Internacional “Discursos e Práticas Alquímicas, Guimarães, 22-24 de Junho de 2006; http://triplov.com/coloquio_06/amorim_da_costa/Enodato . Publicado in A. M. Amorim da Costa, Risoleta Pinto Pedro, Óscar Portela & José Medeiros, Jardins de Fogo, (Ed. Apenas Livros Lda, Lisboa , 2006, Col. Lapis de Carvão, 5), pp. 3-20.

[17] Hermes Trismegisto, A Tábua de Esmeralda (versão latina impressa pela primeira vez, em 1541, em Nuremberga, inserta na colectânea Alchemiae Gebri Arabis Philosophi Solertissimi Libri, cum Reliquis (Nuremberga 1545), p. 294 .

[18] Hermes Trimesgisto, Asclépio, nº 19

[19] Allen G. Debus, “O Homem e a Natureza no Renascimento”, (Porto, Porto Editora, 2002) p.141.

[20] Do muito que se tem escrito sobre o Princípio Antrópico na sequência da sua formulação por Brandon Carter, na brevidade com que tratamos do assunto neste trabalho, indicaremos aqui apenas quatro referências básicas que serviram de base para texto que apresentamos e nas quais pode o leitor encontrar referida muita outra bibliografia sobre o assunto:

(i)-B. Carter, " Large Number Coincidences and the Anthropic Principle in Cosmology " in Proceedings of the IAU Symposium 63: Confrontation of Cosmological Theories with Observational Data ( Cracóvia. 1973) , Ed. Dordrecht: Reidel, 1974, pp.291-298.

(ii)-George Gale, The Anthropic Principle in Sci. American , 245 (1981), pp. 114-122.

(iii)-Paul Davies, The Anthropic Principle in Other Worlds, Space, Superspace and the Quantum Universe (J.M.Dent & Sons, Ltd, London/Toronto/Melbourne, 1981), pp.143-161.

(iv)- John D. Barrow. and Frank J. Tipler, The Anthropic Cosmological Principle (Oxford , Univ. Press, 1996 ) .  

[21] Paul Davies, O. Cit., passim.

[22] Blaise Pascal, Pensées, 1670, Sect. II, A miséria do Homem sem Deus, pens.72

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