VII Colóquio Internacional
"Discursos e Práticas Alquímicas"
LAMEGO - SALÃO NOBRE DA CÂMARA MUNICIPAL
22-24 de Junho de 2007

Helena Langrouva & Eduardo Langrouva
Revisitando Casablanca de Michael Curtiz (1943)
- Ficção fílmica e alquimia do feminino-

Do Café do Rick ao flashback de Paris:
da esperança ao reencontro

O espaço do Café do Rick é acompanhado desde o início pela emblemática luz rodopiante do farol de Casablanca que ilumina a entrada, o interior do café, o escritório de Rick – Richard Blaine -, o rosto de Rick e Ilsa, os espaços afins do café onde Rick se movimenta sozinho, com personagens que vão aparecendo e permanecendo ao longo do filme. É uma luz penetrante, pontual e fugidia como a da vida, como a das vidas que se vivem em Casablanca, uma luz que a um tempo se concentra, repousa e se dilui nos efeitos sobre o rosto de Ilsa Lund, ao longo do filme.

A luz do farol começa por incidir na porta de entrada do Café do Rick e sobre personagens anónimas bem vestidas que nele vão entrando, descontraídas no modo de vestir, de estar, de comer e de beber, envolvidas por efeitos de luz, ao longo dos travellings no interior do café, até ao cantor e pianista, no centro, catalizando a festa pelo canto, o piano e a concentração de luz, embevecendo os espectadores do café e o espectador do filme, imprimindo uma atmosfera de beleza e de esperança. Os travellings do fundo do café incidem sobre arcos iluminados e candeeiros de parede acesos, por detrás de personagens anónimas. Uma mulher muito rica vende diamantes a um negociante local. Dois homens falam de estar há muito tempo à espera, outros dizem discretamente que há camiões à espera de levarem pessoas, outro anuncia que uma traineira vai zarpar para Santiago.

Um professor alemão, Carl, que serve à mesa, ocupa por vezes o centro da imagem tendo ao fundo um magnífico espaço iluminado, com forma de curva ou arco. É uma imagem de esperança embora num espaço fechado, quer no Café quer da sala de jogo.

À medida que a acção vai avançando, ao longo do filme, esse fundo luminoso vai sendo povoado de sombras de grades, portas, pessoas, objectos sobre as paredes ou a projectarem sombra, o que é indicador de sofrimento, dificuldade.

Na sequência seguinte, o anunciado criminoso do comboio foi localizado - Ugarte, aquele que tem vistos à venda e, quando está a ser apanhado, consegue fugir dentro do espaço do café do Rick, entrega os vistos a Rick que os esconde discretamente dentro do piano de Sam. Ugarte, ao sentir-se perseguido, sai do café e atinge a tiro os polícias que acabam por prendê-lo. Mais tarde sabe-se que ele ou terá morrido ou cometido suicídio. Chega ao café o Major Vassler, à espera que chegue Victor Lazlo, um conhecido cidadão checo, um dos chefes do movimento da resistência ao nazismo, que esteve num campo de concentração e que é procurado pelos nazis. O capitão Renault afirma que Lazlo vai ficar preso em Casablanca, às mãos de Vassler, mas Rick aposta com ele que tal não acontecerá (subentende-se porque Rick tem vistos que Ugarte lhe entregara e que poderá passar para Lazlo). Ao tentar controlar Rick.- Richard Blaine –, o major Vassler tem de ouvir as suas respostas de homem neutral que se apresenta como um “bêbado” - “I’m a drunker”- que nasceu em Nova Iorque, passou por Paris ocupada e agora é “do Café Américain” em Casablanca. Vassler também diz que é “do Café” e assim se resolve a suposta neutralidade. Victor Lazlo aparece no café pela primeira vez na companhia de Miss Ilsa Lund, um jovem sueca não anunciada como sua esposa, são acolhidos pelo capitão Renault, chefe da polícia, no Café do Rick. O pianista e cantor – Sam - reconhece de imediato Ilsa Lund que acaba por reconhecê-lo também ao longe e fala dele a Renault, porque o conhecera em Paris, na companhia de Rick.

 

O primeiro plano - plano aproximado - do feminino neste filme é o de Ilsa, irradiando luz e beleza, alguma nostalgia e serenidade (2772), a olhar para Sam a cantar e a tocar piano. A própria presença de um feminino marcado pela beleza física e espiritual introduz de imediato na ficção deste filme a ideia de que Ilsa só se movimentará com homens de espírito também elevado, com ideais, que poderão contornar situações muito difíceis: ela própria e o tratamento da sua imagem prenunciam que haverá ao longo do filme uma transmutação do próprio feminino em catalizador de harmonia e amor, dentro do contexto e o horror da guerra que ela odeia. Entretanto Vassler obriga Lazlo a ir vê-lo à parte, tentando oferecer-lhe um visto para seguir no dia seguinte para a América, se Lazlo lhe der os nomes de chefes internacionais da Resistência que lhe interessariam, o que Lazlo evidentemente recusa, como recusou antes de ir para o campo de concentração. Entretanto Renault diz a Ilsa que Rick é o dono do Café e que se fosse homem se apaixonaria por Rick , embora se sinta doido por elogiar outro homem.

O primeiro grande plano de Ilsa (2773), a olhar para Renault que lhe fala de Rick, confirma a sua incomparável beleza, o seu recato, interioridade e subtil humor. Ainda nesta sequência, o plano aproximado de Victor Lazlo e Ilsa (2774) a ouvirem uma cantora de língua espanhola a cantar uma canção de amor e de paixão é detonador da sombra que sobre eles poderá descer em Casablanca: é visível no tratamento dos efeitos de luz e sombra sobre os rostos, no vestuário e no fundo: Lazlo está um pouco apreensivo ao ouvir a cantora e Ilsa olha para lugar indefinido, de perfil, com expressão de expectativa e algum temor que passará, em gradação crescente, ao clímax do grande plano seguinte (2775) que exprime, na expressão do seu olhar, no tratamento da sombra do rosto e do fundo, o seu medo de que Victor Lazlo se exponha em excesso e corra muitos riscos desde ser preso a ser enviado de novo para um campo de concentração.

Seguem-se planos aproximados e grandes planos de Ilsa da maior importâmcia para a expressão da transmutação e irradiação do feminino para o bem:

(2776): Ilsa está sentada – plano aproximado - a olhar tranquilamente para Sam, o cantor e pianista, como quem repousa e assume o seu passado em Paris onde o conheceu, tendo ao fundo sombra e portas, grades ou janelas fechadas;

(2777): Ilsa – plano aproximado - pede a Sam que lhe cante a canção “As time goes by”, a que Sam responde que Rick, o patrão, não quer que se cante: Ilsa irradia felicidade e luz, em toda a sua expressão e no seu sorriso, ao fazer este pedido a Sam: a luz, além de irradiar do seu rosto, ilumina uma parte do seu busto e a própria profundidade de campo; essa luz é surpreendida por um corte de sombra no ângulo inferior da imagem que condensa o enigma do amor, da vida, da esperança, da paragem no tempo, envoltos em luz que há-de ficar acima da sombra, como nesta imagem;

(2778): Ilsa – grande plano - pergunta serenamente a Sam onde está Rick a que Sam responde com mentiras subtil e delicadamente reconhecidas por Ilsa;

(2779): Ilsa – plano aproximado - pede a Sam que toque pelo menos uma vez “As time goes by”; ele finge não se lembrar e ela entoa o início da melodia que ele continua a tocar e a cantar;

(2780 e 2781): grandes planos de Ilsa a ouvir a canção “As time goes by” que exprimem a transmutação da felicidade das memórias de alegria de Paris, ainda não expressa, em profunda mágoa e nostalgia comovente para ela própria e para o espectador do filme, por se ter separado de Rick que já dissera a Renault ter conhecido, com Sam , num café, em Paris;

(2782): grande plano de Ilsa , com o rosto irradiando luz, beleza espiritualizada e tristeza, com os olhos lacrimejantes, ao ver Rick a entrar no café e a dizer a Sam que lhe pedira para nunca tocar essa canção; Rick ainda não tinha reconhecido Ilsa. À medida que Rick se aproxima e acaba por reconhecê-la, Ilsa, a um tempo contida e feliz, evolui para o sorriso - grande plano (2783)- aberto e irradiante, de memória felicíssima, quando Rick a reconhece, lhe fala da última vez que a viu no café La Belle Aurore, em Paris, ela vestida de azul e tudo o resto era cinzento.

O tratamento do feminino nesta sequência, além de inesquecível, parece fazer acreditar ao espectador que Ilsa e Rick vão conseguir superar essa situação inesperada de reencontro em Casablanca. Há uma serenidade temperada pela melancolia de seres humanos que vivem experiências em profundidade, de pessoas muito belas de espírito e muito sensíveis. O rosto de Ilsa tudo concentra da sua alma profunda que, pela sua presença, pode contribuir para o triunfo a um tempo do amor e da virtude que aliás é evocado no final do filme, por Renault, quando julga que é Richard Laine e não Victor Lazlo que parte no avião com Ilsa Lund. Neste momento do filme, Rick ainda não sabe que Ilsa acompanha Victor Lazlo em Casablanca.

INICIATIVA:
Centro Interdisciplinar de Ciência, Tecnologia e Sociedade da Universidade de Lisboa (CICTSUL)
Instituto São Tomás de Aquino (ISTA)
www.triplov.org

Patrocinadores:
Câmara Municipal de Lamego
IDP - Complexo Desportivo de Lamego
Junta de Freguesia de Britiande
Paróquia de Britiande
Dominicanos de Lisboa

Fernanda Frazão - Apenas Livros Lda
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