VII Colóquio Internacional
"Discursos e Práticas Alquímicas"
LAMEGO - SALÃO NOBRE DA CÂMARA MUNICIPAL
22-24 de Junho de 2007

A desmaterialização do corpo na
concepção pós-moderna da hipernarrativa

José Augusto Mourão (UNL-DCC)

INDEX

Resumo
Introdução
Manifesto for Cyborgs
Ciberficção
A literatura electrónica
Desencarnação ou co-evolução?
Coda

Manifesto for Cyborgs

As novas tecnologias estão a pôr em risco (ou a reconfigurar, conforme as perspectivas) o sujeito incarnado. O imaginário ciborgue modificou os horizontes daquilo que um corpo pode ser e aponta para o artificial como o estaleiro em que se modifica e constrói o corpo. As fronteiras entre natura e cultura estão a ser derrubadas, confirmando-se neste campo aquilo que Judith Butler observara: “A natureza acaba por ser sempre cultura” (1990:7). Há de facto uma tendência niilista que cresce no ciberespaço e que considera o corpo como supérfluo, daí a falar-se de “metacarne”, de um modo de existência que ignora a dor a que o corpo está sujeito e lhe promete a imortalidade. Os filmes do género Alien (1979) ou Blade Runner (1982) levam-nos a aderir à tese de Linda Howell para quem “A deslocação de um conceito abstracto de maternidade para as máquinas e os artefactos permite a percepção contemporânea do corpo materno também em termos de mecanismo”(1). No imaginário social da sociedade pós-industrial há uma tendência para identificar a mulher com a máquina. A máquina funciona como substituto daquilo a que socialmente atribuímos à mulher: lavar, cozinhar, reproduzir. É verdade para os electrodomésticos, como para o erotizado duplicado corpóreo do filme Metropolis. A RV caseira, o engenho dos homebrewers é hoje uma possibilidade emergente (Howard Rheingold, 1997: 396). R. Bradotti, que defende um nomadismo incarnado e situado, di-lo de forma certeira: “uma ligeira percentagem de tecnofobia é compreensível, dada a estreita identificação do corpo feminino com o seu duplo mecanicamente reproduzido” (In Metamorfosi: 306). Ora, isto muda com a chegada da máquina e da electrónica pós-moderna. Na pós-modernidade o feminino materno/material aparece já incorporado no complexo tecnológico. Desaparecendo o papel da mulher no seu papel reprodutivo tecnologicamente planificado, o campo tecnológico transforma-a no espaço de indeterminação sexual, traduzindo-se em termos de imaginário transsexual. Daí a euforia ciberfeminista.

O Cyborg Manifesto de Donna Haraway,(1986), muito marcado por um tom apocalíptico, anuncia o fim das categorias humanistas tradicionais em que a epistemologia feminista longo tempo se baseava. É assim que Linda Howell sugere um outro nome para feminista neste contexto: “post-humanist” (2). Baste-nos este passo: “Com o reconhecimento, tão arduamente conquistado, da sua constituição histórica e social, o género, a raça e a classe não podem constituir a base para a crença na unidade ‘essencial’. Não existe nada do facto de se ser ‘fêmea’ que vincule naturalmente as mulheres. Não existe sequer o estado de ‘ser’ fêmea, uma categoria em si mesma altamente complexa, construída em contestados discursos científico-sexuais e outras práticas sociais”(3). O imaginário de Star Trek convém mais a uma reimaginação do homem do que à tradicional imagem da mulher. Como observa Linda Howell,“Revendo a versão oficial da relação KirkSpock (ou K/S) a incisão crítica (slashing) reconstrói os objectos do desejo das mulheres heterossexuais em termos de masculinidade homossexual” (4). Aliás, o termo slashing, habitualmente associado à mutilação dos corpos no contexto dos filmes de terror, remete-nos para a definição de escrita como uma prática de subversão dos mitos da origem.

“O Manifesto Ciborgue” de Donna Haraway provocou inúmeros efeitos nos estudos culturais, nos estudos da ciência, da tecnologia, da ciência ficção e teoria política feminista. Este é porventura o texto que mais profundamente ataca os binarismos e as fronteiras da fortaleza da tecnociência patriarcal. Modest_Witness é uma extensão deste projecto. O feminismo tecnocultural entende as tecnologias não como máquinas inanimadas, mas como actores social e historicamente significantes. Altera-se assim a tradicional imagem da mulher, alteram-se as categorias tradicionais do humanismo em que assenta a epistemologia e a metodologia feminista através da introdução da figura fictícia do ciborgue que é: “um organismo cibernético, um híbrido de máquina e organismo, simultaneamente uma criatura com realidade social e uma criatura de ficção” (Ibidem, p. 222). O ciborgue é ainda um constructo utópico: uma forma de vida baseada na rede de relações com outros que pode criar redes que promovam a justiça e a libertação da mulher sobretudo na medida em que as liberta do corpo e do ou/ou em termos de identidade de género. Estes híbridos do humano e da máquina subvertem o nosso pensamento em termos de binarismos hierárquicos. A figura monstruosa do ciborgue, que nos aparece como um emblema desta tradição dominante representa o memento mori dessas “fractured identities” do feminimo ocidental dos anos 90. “Cyborg” (“Cybernetic organism”) do Grego kybernetes, é a figura que está na origem da investigação espacial criada pelos militares durante a Guerra Fria e que a ficção científica usou à saciedade. Este conceito serve sobretudo para discutir a diferença entre o humano e as máquinas. É uma metáfora aplicada a uma criatura artificial. Os ciborgues só existem na realidade virtual ou são quimeras, combinando biologicamente o material humano e o artificial. O ciberespaço é o espaço virtual e o meio ambiente criado electronicamente para o ciborgue. Porém, os ciborgues de que trata Haraway são monstros altamente ofensivos, considerados blasfémia “do ponto de vista intrínseco das tradições evangélicas e secular-religiosas da política dos Estados Unidos, incluindo a política do feminismo socialista” (Manifesto: 222). A blasfémia vai tornar-se uma forma de se proteger “da maioria moral intrínseca ao mesmo tempo que continua a insistir na necessidade da existência de uma comunidade” (Manifesto:222). Mais ainda: os ciborgues são as mais vulneráveis amostras da Maioria Moral e da teleologia de Star Wars: “corpos mortais, finitos e vulneráveis”.

(1) Ibidem , p. 208.

(2) Linda Howell, “The Cyborg Manifesto Revisited”, in Postmodern Apocalypse. Theory and Cultural Practice at the End, (ed.) Richard Dellamora, University of Pennsylvania Press, 1995.

(3) O Manifesto Ciborgue, in Género, Identidade e Desejo. Antologia Crítica do Feminismo Contemporâneo, (org.) Ana Gabriela Macedo, Livros Cotovia, 2002, p. 232.

(4) Linda Howell, art. cit., p. 203.

INICIATIVA:
Centro Interdisciplinar de Ciência, Tecnologia e Sociedade da Universidade de Lisboa (CICTSUL)
Instituto São Tomás de Aquino (ISTA)
www.triplov.org

Patrocinadores:
Câmara Municipal de Lamego
IDP - Complexo Desportivo de Lamego
Junta de Freguesia de Britiande
Paróquia de Britiande
Dominicanos de Lisboa

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