VII Colóquio Internacional
"Discursos e Práticas Alquímicas"
LAMEGO - SALÃO NOBRE DA CÂMARA MUNICIPAL
22-24 de Junho de 2007

Ana Luísa Janeira
Mutações dos saberes e das ciências no feminino

INDEX

Nota prévia
Mutações em espaços e tempos femininos...
A Senhora Maria
A Senhora Albina
Novas formas de acordes concertados...
BIBLIOGRAFIA

A Senhora Maria

A Senhora Maria era natural de Fontela, aldeia nos arredores de Santo Tirso. Conheci-a já casada com o Pereira, como ela referia o marido, feitor da Quinta de Moinhos (leia-se Munhos segundo a fonética local), de um tio-avô meu, na freguesia de Areias, com vistas para a vila.

Não sendo nada bonita, era fisicamente uma presença forte, servida por um bigode respeitável, a evocar a expressão pêlo na venta, muito frequente na gíria do Norte. Nunca teve filhos, adorava os sobrinhos e acolhia bem as crianças. Acolher bem à época, significava distância, algum afecto visível, mas raramente ligado a gestos.

Das mulheres falava muito. Usava um discurso moralizante, com muito pecado e pudor à mistura. Por isso, retratava-as com imagens sombrias, cheia de suspeitas e de recatos. Uma excepção ligeira ocorria, quando elas apareciam com um aspecto mais vistoso por terem acedido à categoria de mordomas nas festas regionais, nomeadamente na Festa da Senhora da Torre, também chamada Senhora do Parto, em Setembro.

Sintonizando com um inconsciente colectivo latente, possuído pelo medo, como é próprio de uma sociedade fechada e apavorada pelas novidades, os sintomas da ida maciça das mulheres para a fábrica eram reconhecidos como uma ameaça imensa. Aliás, o tema vinha frequentemente à baila, nos cochichos entre ao mais velhos, se mais uma dúzia de moças deixava a lavoura e ia viver do tear.

O espaço envolvente era marcado por um minifúndio predominante, com ramadas e muito milho soberano. De facto, esta paisagem, com uma história prolongada pelo granito, passara a abrigar o volume do cimento em extensão e as chaminés em altura, de tipo fabril. Não sendo especialmente desejada, nem digerida, a coabitação entre ambos estava longe de ser pacífica.

Com muito poucos dados fornecidos pela escola, eu lá ia pressentindo um drama qualquer no ar: aquelas pessoas rurais estavam assustadas, impotentes e sem meios, enquanto a rotação industrial invadia e parecia que vinha para ficar.

O tempo envolvente era regulado pelo sino, ouvido por longe. Mas, quase todos os dias, foguetes consagravam comemorações, da romaria ao casamento. Numa época de transição, também a Fábrica do Telles concorria com eles, através de uma sirene aguçada, lá em baixo, junto ao rio. A cadência quotidiana, na generalidade muito cíclica, tinha picos singulares: à semana, o domingo; ao mês, os dias de feira (segunda-feira em Santo Tirso, terça-feira em Braga, quarta-feira em Famalicão, quinta-feira em Barcelos); ao ano, as romarias, com maior destaque para o 15 de Agosto, dia da Festa da Senhora da Assunção, na região que inspirou A Bruxa do Monte Córdova de Camilo Castelo Branco.

Concomitantemente, relevavam múltiplas actividades ligadas à alimentação e ao ritmo dos corpos: era a hora das sopas de cavalo cansado, merenda dos jornaleiros; era o dia de amassar a boroa ou o dia de vacinar as galinhas. Como ainda, o tempo da marmelada nos caldeirões de cobre, o tempo das vindimas numa azáfama inaudita, entre as vinhas e o lagar; o tempo de matar o porco ou de comer as melhores papas de sarrabulho.

Em Setembro, para os meus irmãos e para mim, havia o dia nefasto do óleo de fígado de bacalhau. Compensado, depois, pelo dia em que o casal de caseiros nos convidava para almoçar: iscas de bacalhau com arroz de feijão, feito num pote de três pés, e os celebrados pastéis jesuítas da Confeitaria Moura.

Para a maioria das mulheres, a sucessão dos dias era dentro de casa ou dentro de muros, com hábitos repetitivos e onde avultava a lida da casa, o trabalho nos campos, e muito especificamente, a responsabilidade por animais próximos, gatos e cães, com destaque para a capoeira, a coelheira e o pombal. A repetição com certa monotonia primava, mas, paradoxalmente, não parecia pesar.

Deste estado de espírito ressaltava, uma conformidade indesejável. Mas não posso negar que havia uma qualquer disciplina nos gestos e nas deslocações pela casa, quando eu, sentada num banco comprido à volta do lume, interceptava a Senhora Maria nas lides domésticas. Talvez por isso, passei a associá-las à ideia de trabalho, incluindo cadências da própria produção intelectual. Não admira, pois, que o mundo feminino nunca invocasse o peso de uma outra monotonia, acabada de chegar: a vida em frente de uma máquina industrial, para confeccionar em nome do “progresso”.

Além de acompanhar essas tarefas, e em contraste com a cidade, havia gozos especiais: deitar tarde pelas desfolhadas na eira, observar o mosto pisado por pernas ritmadas dentro do lagar. Além disso, os socos que aleijavam os pés mas faziam a diferença pelo seu ar campestre. Mas o máximo, na minha lembrança, nunca superou um passeio no carro de bois.

As relações de vizinhança nem sempre eram fáceis, no caso, havia uma inimizade acumulada contra a família em frente, não me recordo porque razões. A “guerra das águas” povoava as histórias tristes da terra, crispando as relações entre as pessoas que morriam ou deixavam de se falar, por causa de um qualquer desvio. Como no Porto, a água era até mais barata do que noutras cidades, foi pelas margens do Vale do Ave que tomei conhecimento deste tipo de situações, com uma longa história e com tenebrosas querelas fronteiriças, associáveis aos problemas seriíssimos que irão ocorrer com a previsível desertificação futura.

Não se falava ainda de iliteracia, mas o analfabetismo era velado-desvelado por camuflagens. Os senhores da terra sabiam ler e escrever, como se impunha – eram eles, o pároco de Areias, o delegado de saúde nas Caldinhas e o D. Jaime da Quinta de Barrimau, em Lama. Porém, espanto dos espantos, quem dominava era a D. Mariquinhas, obviamente alimentada por um séquito de beatério. Em frente da igreja dando para a estrada principal, passava-se pelo portão das Senhoras Pires, com um respeitoso curvar da cabeça. Representavam o sucesso dos conterrâneos pulverizados pelo país, desde o Porto a Lisboa, passando por Coimbra: Américo, o médico e biólogo, António, advogado e escritor, Augusto, advogado e etnógrafo, Fernando, jurista e ministro da educação nacional, etc. Todos também professores e com o apelido Pires de Lima. Por isso, quando as histórias junto da lareira evocavam genealogias ilustres, lá vinham palavras e silêncios, a seu respeito. E com respeito. As ciências em causa recebiam, obviamente, vénias. Vinham elas de seres com “cultura”, mas privados de “alta cultura”. Estas vénias indicavam, à boa maneira salazarista, como se podia nascer, numa freguesia minhota pequena e ser-se grande, depois de muito trabalho e estudo. Assim o povo acreditava. E assim as histórias memorizavam.

Professora Associada com Agregação em Filosofia das Ciências do Departamento de Química e Bioquímica da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa .

Co-fundadora, primeira coordenadora e actualmente investigadora do Centro Interdisciplinar de Ciência, Tecnologia e Sociedade da Universidade de Lisboa (CICTSUL)

Instituto de Investigação Científica Bento da Rocha CabralCalçada Bento da Rocha Cabral, 141250-047 Lisboa

janeira@fc.ul.pt, aljaneira@sapo.pt

 
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