CARLOS MACHADO ACABADO

QUEM ÉS TU?
Um filme de João Botelho
baseado no “Frei Luís de Sousa” de Almeida Garrett

auditório municipal almeida faria

INDEX

Introdução

O “Frei Luís de Sousa” de Garrett: proposta de “leituração” pessoal 

“Quem És Tu?”—o filme

Sugestões adicionais de (meta?) leitura do texto de Garrett

Sugestões adicionais de (meta?) leitura do texto de Garrett

Antes de concluirmos, duas palavras ainda, muito sucintas, sobre a questão do Tempo, na tragédia e no filme: entidade circular, redonda e (pelas piores razões) “eterno” (porque eternamente irresolvido), o Tempo acha na figura do Cardeal D. Henrique uma das suas mais emblemáticas porque disfuncionais imagens: velho-criança sem idade (leia-se: sem lugar próprio no Tempo) ele sugere, de forma inquietante, as não-personagens/embriões de Beckett (ao contrário do que sucede com uma outra, de uma peça radiofónica do autor de “Molloy”—“All That Fall”—para esse trágico D. Henrique de “Quem És Tu?” não parece haver esperança de que, velho, senil, grotescamente regredido a uma segunda infância patética, crepuscular, espúria e confrangedoramente decadente, ele se dê conta de que nunca, realmente, existiu: a figura é, de facto, um achado ficcional e cénico de Botelho e está fabulosamente figurada pelo actor que dá o seu próprio corpo a esse D. Henrique mais espectral do que os espectros, em cujo frágil cadáver ainda residualmente vivo, as fronteiras entre a Vida e a Morte mais obviamente são desafiadas no filme).

É, aliás, uma figura que, a nós pessoalmente, nos evoca de forma irresistível, até pelo seu significado contextual e cultu(r)al, esse outro (quase) velho e infantilizado “Philipe” da “La Grande Bouffe” de Ferreri (o falecido Phillipe Noiret), trágica figura de onanista “projectivo” (via uma velha ama que aqui “reaparece”, aliás, amamentando uma velha “ruína humana e política” que parece ter-se definitivamente “esquecido” de se extinguir de vez) decadentíssimo ‘aprendiz de suicida’ que, com outros ‘despojos existenciais e cultu(r)ais’ (ou civilizacionais e políticos) se reúne para morrer comendo e defecando, numa orgia de desesperadas escatologias que parecem não conhecer limites.

É, o velho cardeal, uma figura que evocamos na página seguinte numa espécie de (uma vez que estamos a falar de Cinema) “curta metragem” (e de curta “montagem”!) para-cinematográfica” onde “colámos” uma tela de Greco a uma outra de Bacon, tentando sugerir, sobretudo àqueles que não tiveram ainda ocasião de ver o filme, o percurso da figura, do nada para um nada mais absoluto e definitivo ainda

Para concluir, porém, um conjunto (que já vai longo) de reflexões e pistas deleituração” para o inquestionavelmente belo (para o—no mínimo dos mínimos!...—agradavelmente provocatório) filme de João Botelho diríamos ainda o seguinte: por tudo quanto atrás deixamos escrito se percebe facilmente que (em nosso entender, pelo menos) se há coisa que, ao invés do que sucede relativamente à fita anterior, não se torne, no caso do filme de João Botelho, necessário fazer é justificar as razões pelas quais escolhemos passá-lo.

Passámo-lo, claro, porque o consideramos, como já várias vezes tivemos oportunidade de afirmar, para além de um “objecto de cinema” inteligentíssimo e de raro gosto, uma peça particularmente relevante para o estudo de um conjunto de aspectos mais ou menos estáveis (e de um modo ou de outro) relevantes tendo em vista a construção de uma portugalidade crítica e analítica que é, sem dúvida, a nosso ver, pressuposto essencial de futuro cultu(r)al, civilizacional e político.

Mais do que de simples futuro, aliás: que é pressuposto vital de simples sobrevivência   

E, por fim (mesmo por fim!) duas palavras sobre a banda sonora: ela assenta, em termos musicais, num quarteto de cordas notável de António Pinho Vargas que funciona, de facto, na (quase?) perfeição, como uma espécie de tradução melódica exemplar das emoções que atravessam o filme.

Botelho “cola-lhe” planos onde a fusão é realmente irrepreensível, completa, perfeita (como o do travelling das estátuas) onde é, de facto, notável o modo como através da sugestão consistente da di/laceração e dissonância (os “pizzicatti” frequentes da peça) ela sublinha essa espécie de “achatamento ôntico” total (exemplo daquilo que a propósito do teatro de Beckett, noutro lugar, designámos tentativamente por “transrealismo fenomenológico” ou “transrealismo ontológico” devido à clara intenção de utilizar o “realismo” aparente da descrição exaustiva a fim de, por absurdo, “eliminar criticamente”, no limite, de forma muito subtil, as barreiras entre o humano e o animal e, sobretudo, entre o humano e o mineral) processo de que há, aliás, diversos outros exemplos no filme.         

É esta, sem sombra de dúvida, um exemplo de parceria de sucesso entre formas ou modos de expressão—de interdisciplinaridade—estética e cultu(r)al.                                            

Carlos Machado Acabado
Montemor-o-Novo em 22.11.07
Carlos Machado Acabado (n. 1945), lic. em Filologia Germânica. Professor efectivo do ensino secundário (apos.). Ensaísta ("Seara Nova", "O Professor", "Jornal da Educação", etc.), artista plástico (presente em diversas exposições: Bienal de Artes Plásticas da Festa do "Avante", exposições individuais, colectivas, etc.). Tradutor.