CARLOS MACHADO ACABADO

QUEM ÉS TU?
Um filme de João Botelho
baseado no “Frei Luís de Sousa” de Almeida Garrett

auditório municipal almeida faria

INDEX

Introdução

O “Frei Luís de Sousa” de Garrett: proposta de “leituração” pessoal 

“Quem És Tu?”—o filme

Sugestões adicionais de (meta?) leitura do texto de Garrett

OFrei Luís de Sousade Garrett:
proposta de
leituraçãopessoal  

Estes, alguns pressupostos genéricos que nos pareceu relevante, ainda uma, vez, reafirmar.

Passando, todavia, à análise do que poderíamos provavelmente chamar a matéria garrettiana em termos genéricos, comecemos concretamente por aqui: falámos atrás de qualquer coisa parecida com “sedução” a propósito da impressão, estética mas também intelectual, despertada em nós por esta pessoalíssima versão de “Frei Luís de Sousa? que o respectivo realizador entendeu (potenciando claramente a tal intenção ou a tal sugestão de ‘interactividade comprometida’ com a portugalidade que todos—e ele também!—somos, rebaptizar de Quem És Tu?.

Ora esta sedução ou este fascínio despertados por aquela que é, sem dúvida, repetimos, uma das mais cuidadas e minuciosas (uma das mais... amorosas?) re/visões que conhecemos de um texto clássico começa logo no modo como o realizador (re)põe a questão, absolutamente fulcral, das relações entre o Teatro e o Cinema—que é como quem diz, neste caso (o caso de um homem a quem o problema há muito se vem sucessivamente pondo e repondo de um modo particularmente instante e vivo) entre o Cinema eele próprio.

Trata-se de um problema teórico mas também prático com o qual já aqui, por mais de uma vez, nós mesmos, nos cruzámos no âmbito das actividades habituais do nosso ‘Cine-clube na Biblioteca’.

A questão pôs-se, efectivamente, no que diz respeito aos filmes por nós até ao momento já exibidos, desde logo, a Lopes Ribeiro—de quem vimos, como se sabe, até ao momento, duas obras. Pôs-se-lhe, primeiro, num’ “A Vizinha do Lado” muitolight e muito imediatamente consumível (da qual, em boa verdade, ninguém esperaria, em momento algum, grandes soluções de natureza técnico-teórica para o problema mas onde, ainda assim, a nosso ver, Ribeiro resolveu ‘tudo o que tinha a resolver’ com solidez e inegável competência); e, depois, no “Frei Luís de Sousa”, o segundo dos filmes que dele vimos—obra onde o realizador d’ “O Pai Tirano” voltou a optar, embora num registo totalmente diferente, por não criar a si próprio grandes dificuldades de ordem metodológica (ou mesmo epistemológica) a propósito de toda esta problemática, determinando, no essencial, ficar-se, como dissemos, por “filmar respeitosamente a peça” deixando a epistemologia e os problemas teóricos para outros

Para “outros” quer dizer: para um Straub, para um Godard, para um Oshima de quem já por diversas vezes referimos os nomes—mas também (e aqui entramos directamente no ponto que nos interessa, sobretudo, neste passo, abordar e discutir) para um João Botelho que a Lopes Ribeiro se seguiria no (re) tratamento cinematográfico  da clássica matéria garrettiana. E como faz, então, Botelho para superar as óbvias dificuldades que a operação de “filmar teatro” fatalmente implica?

O que Botelho faz é assumir, inteligentemente, por inteiro a própria dificuldade ou as próprias dificuldades inerentes ao desígnio de fazê-lo, optando, ao contrário do seu antecessor na adaptação do texto garrettiano, por não se limitar a filmar passivamente o teatro mas em vez disso por assumir ousadamente todos os riscos próprios do propósito de fazer cinema com ele—que é uma coisa que, por exemplo, um Eduardo Geada teve, no seu “O Banqueiro Anarquista”, insuperáveis dificuldades para fazer (e acabaria, aliás, mesmo, em nosso entender, por não lograr fazê-lo, de todo).

Ora, sendo que, no Teatro, a não ser em casos verdadeiramente de excepção, a palavra é, senão tudo seguramente muito, Botelho, crente na fatalidade fílmica nacional de uma cinematografia “de composição” em detrimento de uma (segundo ele: financeiramente incomportável) cinematografia “de acção” (isto, para utilizar expressões suas), optou por um projecto de “re/significação ulterior” (ou de metassignificacionalidade assumida) da própria palavra, correndo, como dissemos, os riscos inerentes ao projecto de re/utilizá-la re/encaixada de modo completamente intencional e consciente (e, a seu modo, também subversor e até subversivo) num contexto que lhe é (quase?) por definição estranho: o Cinema, a arte do movimento.

Re/encaixando-a dialecticamente aí, exactamente na condição (como dizer?) ‘in/essencialmente passiva e in-activa’ (e aqui é que está o interesse e a originalidade do processo) como sucedâneo ou como “reserva dialéctica” da própria acção, ele imagina, a nosso ver, ter achado o meio ideal para “ilustrar” aquilo que no “Frei Luís de Sousa” original era justamente susceptível de ser entendido já como uma espécie de mal disfarçada (sub?) consciência do advento de um indeclinável e amargurado ‘fim de História’ e, ao mesmo tempo, como uma desencantada reacção à tomada de consciência histórica e politica de uma (subtilíssima, fatal—e apenas hipotética?...) aptidão ou engenho nacionais para o desastre—de “vocação nacional para o apocalipse”—que, a cada momento, em nosso entender pelo menos, ressuma de forma verdadeiramente dilacerante, do belíssimo texto (às vezes, espécie de “grande orgia verbal suicidária” colectiva e de puro “jeu de massacrepessoal e civilizacional…) garrettiano

Como transpira ou exsuda, aliás, a seu modo, de outras obras com as quais o “Frei Luís possui inegável parentesco cultu(r)al e, sob diversos aspectos,  cosmovisional: noutro local falámos de “A Morte de Danton” de Büchner ou do “Hamlet” de Shakespeare; pois bem: para não nos acusarem de não variarmos as citações e as invocações, poderíamos legitimamente juntar a esses, entre outros, por exemplo, o “Don Carlos” de Schiller, esse Hamlet germânico, tão romântico e até, afinal, tão ‘peninsular’ pelas emoções, pelas personagens e pelo tema.

Um desencanto (e uma impotência) que eram da peça, claro—daquela gente de que a peça nos fala, daquele tempo em particular—mas  (mais uma vez o sublinhamos) que eram também do próprio Garrett no momento—e no acto, na circunstância (e pela circunstância)—de escrevê-la.

Da amargura e desilusão de Garrett já noutro ponto falámos: “desiludido da política” como recorda João Gaspar Simões, lançado “borda fora por esses mesmos que ele ajudara a subir ao poder”, forçado a demitir-se do cargo de Ministro dos Negócios Estrangeiros (que ocupa fugazmente de 4 de Março a 17 de Agosto de 1852) “com a caluniosa fama de se ter locupletado com dinheiros públicos”, como escreve Gaspar Simões, sai de cena amargurado— ele que, nas palavras do citado biógrafo, tinha dado um forte e empenhado contributo para nada menos do que “ajudar a resgatar a legislação do país do seu servilismo feudal”.

Enredado, pois, nas teias de uma Revolução que tende irresistivelmentejá para a quietação (ou para a“pacificação”)e para o completo repouso (pelo menos no que respeita ao generoso compromisso original com os valores cívicos e políticos da regeneração de um país globalmente adormecido; uma revolução que, como tantas outras, passaria de imediato, uma vez triunfante, a devorar com autêntica voracidade, um a um, diversos dos seus próprios filhos) Garrett, a nosso ver, projecta na tragédia microcósmica de Manuel de Sousa Coutinho, o “herói frágil” e sem esperança do filme, o seu próprio amargo desencanto com a História, tal como ela viria, afinal, a acontecer no concretoo “huis clos”?...

O próprio trajecto histórico seguido pelo Romantismo, levando do “Romantismo Civilizacional e Social” de um Garrett e de um Herculano até à sub-escola acontecimental purade um Rebelo da Silva ou, mais exemplar ainda, ao amorismo tétrico e delirante de um Soares de Passos; o próprio trajecto em causa, dizíamos, ajuda a perceber o modo como se foi dando a lenta e contínua desagregação dos grandes ideais românticos de civilização e o afastamento consistente (da sociedade em geral como naturalmente das suas elites intelectuais, da intelligentsia portuguesa da época) relativamente ao grandioso e mesmo aqui-e-ali prometaico impulso regenerativo burguês de origem até se chegar ao acontecimentalismo (quase) “puro” do romancista de “Mário” ou à mera lucubração delirantemente ensimesmada e historicamente de todo demissionista de Passos—o homem que vai, a nosso ver, conferir expressão limite e até, se assim quisermos dizer: forma definitiva ao espírito necrólatra e “amorosamente suicidário” registado, por exemplo, por um lucidíssimo Unamuno, correspondente de Teixeira de Pascoais e arguto conhecedor de alguma portugalidade mais estável e característica, a quem não escapa essa vertente obsessivamente recorrente do “mal da pátria”, tantas vezes retomado, figurada quando não mesmo realmente.

Unamuno que dirá textualmente: “Portugal é um país de suicidas e talvez mesmo um país suicida”…     

Há, aliás, na “estória” de “Frei Luís de Sousa” coincidências que falam por si: que dizer por exemplo daquela ideia expressa por Manuel de Sousa Coutinho a propósito de o seu pai ter morrido (alegoricamente?...) trespassado pela própria espada, numa queda acidental?...   

Notemos, já agora, a propósito deste fantástico ultra-romântico tão característico do criador do onírico “Noivado do Sepulcro”, que ele tem (em nosso entender, pelo menos) pouco a ver com, por exemplo, a literatura hoje-por-hoje muito injustamente esquecida de um Álvaro do Carvalhal, autor em cujas obras o fantástico é muitas vezes usado, de modo sem dúvida admirável, para reflectir, de uma forma por vezes, pungentíssima quando não verdadeiramente lancinante, sobre a própria época—sendo que um dos mais fabulosos textos saídos da pena muitofreudiana e até muito felliniana e muito buñueliana de Carvalhal (“Os Canibais”) adaptado ao cinema por Manoel de Oliveira configura, em nosso entender, uma das mais espantosamente angustiadas (paradoxalmente: completamente delirantes e ao mesmo tempo profundamente lúcidas:deliracerantes”, como diria previsivelmente um Mia Couto) reflexões sobre o próprio apodrecimento e a fatal decomposição de uma certa burguesia oitocentista nacional, completamente encalhada ou naufragada na História que a tinha visto emergir triunfalmente, activa e pujante, muito pouco tempo ainda antes

Já agora, a propósito ainda da “dialéctica teatralidadedo filme [ou seja, regressando a “Quem És Tu?”, desse projecto de “desafiar e questionar” mas também expandir os limites específicos do próprio Cinema através do uso exaustivo, provocatório mesmo, da quietude ou da premeditada acinesia (e) da palavra—ou da palavra como imobilidade tanto como da imobilidade como palavra] refira-se o seguinte aspecto que lança seguramente luz ulterior sobre a questão.

Foi o caso de, no debate que se seguiu ao visionamento do filme de Botelho alguém muito lucidamente ter registado o modo como a ideia de interior (directamente associável, diríamos nós à de Teatro e de palco) é importante—de facto, é vital!—na peça, claro (onde é algo de intrínseco e natural)  mas sobretudo no filme.

É-o, com efeito. Na peça é porque tem de ser, claro.Já no filme (embora descontando aquele pormenor “insignificante” dos custos—que Botelho oportunamente recorda—não teria necessariamente de sê-lo

Ou seja: o sê-lo é uma opção, um projectonão exclusivamente uma fatalidade, monetária ou não

E nós que confessamos admirar a ousadia e a própria ruptura nas sucessivas “revisões” da História feita ou fazer, por diversos autores (como por inúmeros encenadores, no caso específico do teatro) não queremos deixar passar em claro esta oportunidade para reflectirmos adicionalmente sobre o modo como seria não só possível como, sobretudo, interessante e a todos os títulos fecundo, encenar, por exemplo, (suprema transgressão!) o “Frei Luís de Sousa” de Garrett numbunker em tudosemelhante àquele em que a História mesma encerrou determinadas personagens reais, elas mesmas trágicos exemplos de “trânsfugas limite da própria realidade” e de (sangrentos e monstruosos, esses!) “desterrados voluntários” da História…    

Um outro ponto que é, sem dúvida, crucial abordar a propósito de “Frei Luís de Sousa” (o filme de João Botelho gira claramente em torno deste aspecto) é: é Garrett—o Garrett de “Frei Luís de Sousa”, nomeadamente—umsebastianista”?

E Botelho? Sê-lo-á o próprio Botelho?...

Bom, no “Frei Luís de Sousa”, Garrett é, a nosso ver e à falta de melhor definição, com certeza, tanto um sebastianista crítico” que “deixa à História inteira liberdade” para materializar-se e concretizar-se em função do crescimento ou da expansão naturais da própria realidade, digamos assim; tanto isso, com efeito, como um sebastianista hiperbólico, providencial ou vitalista que, “à falta de História” invoca, em (quase?) desespero, no limite, a própria Providência para vir, um pouco (ou, pelo contrário, um muito?...) ex-machina “intervir” providentemente na própria História sempre que esta pareça pouco inclinada por si só a fazê-lo...  

Concretamente, o que pretendemos na essência expressar é que existe neste domínio uma coincidência básica de convicções entre Garrett (relativamente à realidade histórica e politica concreta do seu tempo) e Botelho (lançando corajosamente o olhar crítico e analítico sobre o seu próprio século): ambos, com efeito, de um modo ou de outro, consideram que o “realismo politico” (leia-se: um certo, perverso, cínico, despudorado maquiavelismo—ou “realpolitik”—objectivos: lá está a objurgatória contra os ricos “que oprimem e desprezam” e que aceitam “Os Lusíadas” como o “tributo de um escravo”) conseguiu, já, no essencial, abafar, sufocar, subverter e esvaziar aquilo que na Revolução Liberal, por um lado e no Portugal democrático (oudemo-formal?) dos nossos dias, por outro, foi (tão generoso quanto indeterminado, inconcluso e, sobretudo, desordenado, torrencial) ímpeto transformador, potencialmente regenerativo e saneador de um multímodo (mas, ao que tudo indica, também recorrente, inextinguível) conformismo ou apatia nacionais que marcam—desde os auspiciosos não-feudais, municipalistas, prolegómonos da portugalidade?—a História nacional no seu todo.

Ou seja: tal como a Maria de “Quem És Tu?”, figura paradoxal onde Botelho “cola” os “dois lados” ou os “dois pólos” do impulso sebastiânico puro (um impulso onde cabem, como duas faces da mesma moeda, o fogo que potencialmente desbrava e vence em abstracto inércias e apatias, a eterna chama da esperança mas também o fogo que acaba destruindo ou consumindo o próprio portador e tudo em redor dele) aquilo que Botelho advoga (ou, pelo menos, aquilo que da tragédia como do filme ressalta como valor) é essa persistente aptidão para crer, para seguir acreditando mesmo quando em redor do “crente” tudo se encarniça para dissuadi-lo e desencoraja-lo de assim proceder.

Para acreditar enquanto for objectiva e subjectivamente possível, pelo menos...

Num documentário essencial que acompanha a edição DVD do filme, Botelho refere-se, aliás, abertamente ao “sebastianismo” como algo que contraditoriamente limita e afoga a iniciativa nacional, por um lado, ao mesmo tempo que, por outro, permite e até patrocina algumas (diz ele) “das mais belas páginas da poesia” (quererá dizer: da loucura, da “ditosa insanidade”, da, apesar de tudo obstinada, esperança?...) nacionais.

Esta nossa (admitimo-lo sem reservas: estritamente pessoal) interpretação do “sebastianismo” garrettiano e botelhiano baseia-se no modo, igualmente próprio, como nos permitimos “ler” ou como nos permitimosleiturar” tanto o clássico texto de Garrett como aquilo que, em nosso entender, João Botelho viu—e admirou—nele.

A nosso ver, com efeito, num e noutros casos, é preciso considerar, desde logo, para além do respectivo conteúdo imediato, o seguinte outro (chamemos-lhe muito freudianamente assim:) conteúdo latente:

- um Portugal (muito mais, aliás, uma persistente, abstracta e, como dissemos, sempre impendente portugalidade do que, propriamente, um único e concreto Portugal); um ‘país mental’, pois, “velho”, arqueológico, obstinado e espectral, fantasmático (não por acaso, Botelho ”acusa”, no documentário atrás citado, o “seu” Telmo Pais de ser um “vampiro” e, sobretudo, um “espião de seu amo D. João”); um Portugal cuja capacidade para lidar, de modo minimamente válido e eficaz, de modo realista,com a transformação inevitável da própria realidade histórica e politica à sua volta é francamente discutível—para não dizer: algo de literalmente inexistente; um Portugal que regressa ciclicamente “do fundo do próprio tempo” para mortificar e obsidiar cada um dos sitiados presentes que a atormentada Pátria lá vai, apesar de tudo, conseguindo “tant bien que mal”roubar à própria História—sendo esta obstinada e obsidente ir/realidade e/ou possível fatalidade nacional configurada, no caso de “Frei Luís de Sousa”, na figura espectral, fantasmagórica (quase poderia dizer-se: strindberguiana ou—porque não?—patriciana ou pré-patriciana) do Romeiro;

- um Portugal—muito mais material e concreto esse—a sociedade portuguesa, as pessoas, os portugueses, os do tempo de Garrett como os do do próprio Botelho, todos nós; um Portugal que, sendo, como dissemos, essencialmente material e concreto não deixa, por isso, de ser, em larguíssima medida, sempre apenas potencial e inacabado, sempre inconcluso e (ou porque) dilacerado por energias centrífugas que, como os grifos ao fígado de Prometeu, o despedaçam e incansável, obstinadamente laceram (D. Madalena).
É, com efeito, difícil não ver o fortíssimo simbolismo do duplo/nulo casamento (e do consequente dupla, esquizofrénica “infidelidade”) de D. Madalena e não conjecturar sobre o modo “sexual” mas também “civilizacionalmente significado” como Garrett apresenta alegoricamente, no dela, o adultério civilizacional e político da pátria;   

- a expressão futura (a prazo, completamente inviável) desse Portugal concreto, com uma infância muito débil e uma adolescência de sonhos que, vagos e indefinidos embora, pareciam permitir (e até prometer!) a prazo a aparição de soluções efectivas, concretas, para esse persistente “mal da pátria” que é a proposta inaptidão desta para tomar a sua própria História nas mãos e conferir-lhe determinadamente uma direcção e um sentido próprios; expressão de portugalidade futura esta que leva a que ela, pátria prospectiva, sempre rodeada de ominosas sombras de conservadorismo e opressiva inércia (“ léguas de sombra” diz o texto de Pessoa na epígrafe), muitas vezes sob a forma de um circunspecto e clerical paternalismo, acabe, na tragédia como na vida real, tristemente órfã, imolada aos pesadelos suicidários de uns pais, eles mesmos conquistados já pelo contágio esmagador das sombras do passado sempre implacavelmente (re) emergente, saído das brumas do tempo.

(Uma hipótese de encenação de “Frei Luís de Sousa” alternativa àquela maisarrojada que atrás enunciámos seria a de pôr em cena o texto de Garrett num registo assumidamente horrífico “à Carvalhal” ou “à Murnau”—Murnau cujos filmes “de terror” parecem estar sempre—como sucede, aliás, com os “rinocerontes” de Ionesco—“a pensar” na Alemanha do um certo tempo de feiíssima e horripilante memória).

Neste ponto falamos, claro, em concreto, de Maria, a pátria virgem, infecunda, infrutífera, impossível, sempre inconclusa, sempre frágil vime finalmente rendido às forças que a sitiam e acabam fatalmente sufocando. Curioso e com certeza não acidental é que, no filme, o vermelho, que começa por identificar Madalena, passe, a dado momento, a identificar a própria Maria, num processo de “trânsito identitário” labiríntico e complexamente instável que envolve também, por exemplo, como mais adiante veremos, as personagens de D. João e do próprio Manuel de Sousa Coutinho

- um outro Portugal ou uma outra abstracta portugalidade (im?) possível, o “espectro de todos os Portugais futuros” (parafraseando Dickens e sublinhando ao mesmo tempo a evidente modernidade—ao menos potencial—deste Garrett), a segunda das forças centrifugas que dilaceram fatalmente a “portugalidade; aquele Portugal que chegou, em certos momentos, a parecer ser possível e viável após situações mais ou menos avulsas de ruptura histórica e politica (a Revolução Liberal, o 25 de Abril) mas que acaba invariavelmente devorado pelos fantasmas que o esforço sistematicamente insular, sempre tragicamente solitário de algumas vanguardas mais determinadas e lúcidas não foi capaz de extinguir na raiz; um Portugal que acaba (como Manuel de Sousa Coutinho—ele mesmo, a seu modo, cada vez mais um espectro, na tragédia garrettiana) copiando e reproduzindo os erros, as taras, os tiques (a fátua, estéril, ensimesmada grandiloquência) de um passado que, como vimos, não cessa de atormentar e assombrar (“to haunt) e de que o Portugal-Manuel de Sousa (ele mesmo, “uma Maria envelhecida”, perdidas de vez as ilusões juvenis) acaba, as mais das vezes, fugindo para o limbo da História (o convento, o refúgio na contemplatividade estéril—é o próprio Garrett, aliás, quem fala expressamente de suicídio ou, diríamos nós:  ‘morte simbológica’ a propósito do fim dos seus heróis); uma pátria que, divorciando-se melancolicamente da História, acaba de modo indeclinável, abandonando, tão extenuada quanto fatalmente desencantada, sempre a outros qualquer projecto reconhecível de condução efectiva da mesma.

Parece-nos, aliás, significativo que, consciente ou inconscientemente, o realizador de “Quem És Tu?” tenha decidido atribuir ao representante ficcional do “novo Portugal” (Manuel de Sousa Coutinho, o actor Rui Morrison: é esta a explicação para a legenda que inserimos sobre o seu retrato na página 17) um rosto que se assemelha, afinal, em tudo ao que é suposto ser o do próprio D. João na juventude (o quadro de Greco figurando o “Cavalheiro da Mão no Peito” que naquela página reproduzimos)  
 
-uma elite de quadros, pequenos e grandes, “educadores”, etc.—genericamente um funcionalismo e/ou uma pequena intelligentsia ou classe média mais ou menos urbana—reflectindo as dúvidas e as angustiadas hesitações das próprias massas cujo espírito é suposto que ecoem (Telmo—é claramente dele que aqui falamos!...—vacilando de forma significativa entre o cego, dócil, mecânico e epistemologicamente autoritário “biblismo” vaticano que aponta para o passado e para o cumprir sem questionar e a hipótese de abertura e liberdade interpretativa simbolicamente proposta pela visão protestante do cristianismo a que ele alude, expressa mas receosamente, no primeiro acto da tragédia.

Ou rendendo-se por fim à figura de Manuel Sousa Coutinho a partir do momento em que este, com o seu gesto arrebatado e radical de se imolar simbolicamente pelo fogo (dissociando-se ou des-integrando-se figuradamente mas de forma muito eloquente, muito clara e dilacerante, em si mesmo e no retrato que arde…) se converteu já numa réplica ou mesmo num espectro, numa desesperada paródia, do velho Portugal apocalíptico que, como lembra, de forma muito judiciosa aliás, o realizador de “Quem És Tu?” tão eloquentemente fica descrito naquela ideia que refere de que “un bel morire onora tutta la vita)

-um sector paternalista/conservador ominosamente ubíquo e tutelar (Frei Jorge, muito significativamente irmão de Manuel de Sousa Coutinho, isto é, o seu outro lado, o alter ego permanente da pátria que sonha, um dia, crescer e/ou considerar formas pioneiras e autónomas de reinventar-se); Frei Jorge que está constantemente em cena e que representa aqui, em nosso entender, a expressão ficcional e cénica do poderoso impulso doutrinal e doutrinário, latente (neste caso, complacente e paternalista) de conservação do statu quo—quando não mesmo de aberta reversão de qualquer suspeita de mudança; do ímpeto reversor, que tem, porém, acima de tudo, no contexto da tragédia, no re/aparecimento fatal do Romeiro, o instante detonador, o “tornante ficcional trágico” exacto: a entrada em cena da Morte, há longo tempo anunciada  

De resto, no filme como na tragédia, são diversos os instantes em que a revolta de uma moribunda Maria contra as forças que ela sente como sendo da sufocação e da asfixia se torna quase paroxística: Maria pedindo ao pai significativamente “a mortalha” (isto é, o hábito que ele vai tomar); Maria (para nós, inquestionavelmente a figura trágica por excelência, a epítome da jovem “Pátria infecunda e sempre impossível”) clamando para os pais um tão desesperado quanto simbólico: “Levantem-se!” (“do chão”, acrescentará Saramago num título célebre, isto é, da pedra, da condição rasteira e simbologicamente mineral para que caminham) ou debatendo-se angustiadamente com os fantasmas que assombram qualquer saída para a pátria que se demite e evade, afrontando directamente os frades de S. Domingos com a veemente invectiva “espectros fatais”: “Vós quem sois, espectros fatais?”

E, já agora, que dizer da sombra das grades projectando-se ominosamente na parede da cela onde Manuel de Sousa e Frei Jorge dialogam, no terceiro acto?... 

(Em termos genéricos, esta é, aliás, em geral uma linha de consideração e abordagem da História genericamente ocidental que chegámos a admitir explorar ulteriormente, em diversas das formas e modalidades que tomou ao longo da História—inclusive portuguesa—através da exibição no “Cine-clube” de filmes e leitura de livros/peças como “A Missão” de Roland Joffé, no primeiro caso ou de “Der Stellvertreter” (“O Legado” ou “O Emissário” do dramaturgo alemão Rolf Hochhuth onde é evidente a semelhança entre o papel histórico da Igreja—ou de uma certa ideia, muito crítica aliás, desse mesmo papel histórico—figurado nas personagens de ‘Don Cabeça’ do filme de Joffé e, no caso da peça alemã, do próprio Papa Pio XII tal como no-lo apresenta Hochhuth.                               

É, de resto, uma linha que não descartamos por completo vir a retomar em futuro ciclo do “Cine-clube”).   

Estes são, pois, em resumo e em nosso entender, os dados conceptuais da tragédia. É, em nossa opinião, a partir de algo que, na sua essência se assemelhará em tudo ao modo como aqui os concebemos e deixamos sumariamente expostos que João Botelho organiza a sua própria “re/leitura” pessoal da peça.   

Antes, porém, de falarmos do filme propriamente dito detenhamo-nos ainda uns instantes na abordagem de alguns aspectos complementares cuja análise nos parece também relevante. A questão da sexualidade, por exemplo. Recordamos aqui, a propósito, a crítica/ reparo/ censura feita a um certo cinema inglês dos anos quarenta, cinquenta, designadamente do de um dos nossos (até certo ponto da sua carreira) realizadores favoritos, David Lean, realizador de um soberbo “Brief Encounter / Breve Encontro” (a primeira versão) concebido a partir de uma peça curta (“Still Life” / ”Natureza Morta” de Noel Coward; censura essa que verberava acidamente o desejo de auto-negação e auto-repressão erótica nele subtil (ou metaforicamente) expresso. Queremos, desde já dizer que a questão, posta nestes termos extremos e radicais, nos parece conter uma clara injustiça para com o realizador dessa primeira versão de “Brief Encounter.

Isto é, o cinema de Lean pode ser um cinema da auto-negação erótica tanto quanto pode sê-lo da frustração existencial considerada não como uma escolha ou como um projecto, consciente ou não (deliberado ou não) de existência mas como uma certa fatalidade cultu(r)al e social ou até política com a qual é justamente preciso de modo incontornável sempre contar.

Seja como for, quer-nos parecer que a crítica feita na ocasião a Lean e a outros realizadores ingleses seus contemporâneos pode (e a nosso ver, deve!) seguramente retomar-se, aí sim, claramente, na consideração e na análise de textos como “Frei Luís de Sousa” onde, a propósito do que chamámos o “adultério civilizacional” de D. Madalena vale, seguramente, a pena dizer especificamente o seguinte: que também em matéria de sexualidade, o “Frei Luís de Sousa” é emblemático do modo como a sociedade mental portuguesa caracteristicamente se retrai e recorrentemente se reprime—e acaba sempre achando novas/velhas fórmulas teóricas particularmenteeficazes no sentido de  silenciar ou mesmo de matar as diversas formas e representações existenciais e cultu(r)ais, objectivas mas também subjectivas, de desejo.

A repressão sexual opera aqui, com efeito, claramente como microcosmo e metáfora da própria auto-castração civilizacional, social, cultu(r)al e politica da pátria no seu todo—ao menos para nós que entendemos ser esse  inequivocamente um aspecto-chave do texto de Garrett.

Na tragédia que sobre ela se abate chega, efectivamente, D. Madalena a ver (em nosso entender, muito caracteristicamente!) uma forma (justificável?) de punição pelo desejo que, confessa, sentiu pelo segundo marido quando com ele travou conhecimento

Ou seja: confrontada com a emergência da tragédia é o “crime do desejo” (sexual e, a outro nível, histórico, civilizacional e politico) que lhe acode imediatamente ao espírito no sentido de organizar uma explicação articulada, para si compreensível, da realidade

Não por acaso, também, já perto do desenlace, Manuel de Sousa Coutinho se dirige ambiguamente a ela por “irmã”, depois de se corrigir de ter-se-lhe referido como “a minha mulher”, no culminar de um processo de dessexualização/renúncia ao mundo (a começar por—ou incluindo, pois—a renúncia ao exercício ou à propriedade do próprio corpo)—processo esse cujo clímax se aproxima, nesse momento, a passos largos já 

É nossa opinião que Botelho encena com característica inteligência e subtileza este motivo da sexualidade reprimida—e da culpa a ela associada: observe-se, por exemplo, o evidente acinte com que, na sua re/leitura de “Frei Luís Telmo é apresentado dirigindo-se a Madalena, isto é, o tom com que o realizador o faz perguntar/incriminar: “Não sois feliz com o homem que amais?...
Carlos Machado Acabado (n. 1945), lic. em Filologia Germânica. Professor efectivo do ensino secundário (apos.). Ensaísta ("Seara Nova", "O Professor", "Jornal da Educação", etc.), artista plástico (presente em diversas exposições: Bienal de Artes Plásticas da Festa do "Avante", exposições individuais, colectivas, etc.). Tradutor.