CARLOS MACHADO ACABADO.....

UMA ANTÍGONA “EM FORMA DE ROSA”
—algumas reflexões pessoais sobre a “Antígona Gelada
de Armando Nascimento Rosa encenada por João Mota

                               Para a Hermínia que eu amo
                               e para a Yvette K. Centeno que eu admiro 

A única (e possivelmente a melhor!) forma de permanecermos, enquanto cultura dinamicamente ligados à Tradição dita “ocidental”, no que esta possui de mais estavelmente (auto) definidor e identitário, é assegurar-nos de que a crítica (senão mesmo ocasionalmente a educada—a instruída e dialéctica!—profanação…) do que pode ser entendido como o núcleo ou a essência—o “específico témico e representacional” básico— daquela continuam a ser pontualmente levadas a efeito na Arte: na Literatura, no Teatro, na Poesia, no Cinema e por aí adiante.

Historicamente, o surrealismo terá sido o último a ocupar-se de tais tarefas de (como dizer?) vital “afinação identitária”, na forma de “projecto crítico” grupal, dotado de um mínimo de organização (e mesmo de orgânica!), apesar de tudo, comuns.

Embora, para muitos, o surrealismo represente de facto uma ruptura mais ou menos integral com a Tradição narracional e genericamente estética do “Ocidente” (a “esquerda última ou radical do pensar”…) pessoalmente confesso que continuo a ver nele muito mais a consciência inteleccional, crítica e também moral dessa mesma Tradição (i.e. persisto, reconheço, em vê-lo sempre caracteristicamente como algo completamente incompreensível—e até virtualmente ininteligível!—fora de uma profunda “consideração—senão mesmo estima—epistemológica” por ela, especificamente pelos diversos aspectos circunstanciais que a compõem e, em última instância, identificam); muito mais, volto a dizer, do que a referida cisão ou verdadeira, completa, ruptura/corte gnoseológico.

Enunciando a minha ideia de outro modo ainda, diria que as culturas vivem enquanto permanecerem capazes de despertar dissídio senão mesmo (não-raro e até idealmente) a espécie de “amorosa repugnância” que é impossível não ver que ressalta da Obra prodigiosa de um Magritte, de um Rimbaud, de um Éluard, de um Buñuel ou mesmo (e apesar de tudo…) de um Dali.

Acredito, por outro lado, que a ‘porta de entrada’ para a “Pós-modernidade” se situa (im?) precisamente nesse «ponto indistinto do pensar (se) e do representar (se)» individual e colectivo a partir do qual a integração dialéctica contínua das referências e componentes da Tradição deixa de ser sentida não apenas como um imperativo identitário absolutamente básico e essencial mas, de facto, como algo de im/puramente circunstancial e anedótico, por um lado ou de limitador e impediente senão até de impossível e intrusivo na ulterior re/formulação das formas, individual e colectivamente, reconhecidas de «identidade»—ou «identitarização»—por outro.

A “Pós-modernidade” é, assim (em meu entender, pelo menos), a descoberta da natureza supostamente inorgânica ou até anorgânica absoluta (“absolutiforme”) da Cultura, ou seja, configurando em derradeira instância, um modo de conceber abstractamente a realidade (seja lá o que for que isso signifique mas enfim…) em que esta surge sempre, de um modo ou de outro, como algo que eternamente se reinicia mas sempre apenas e realmente a partir de si mesmo sem nunca chegar, por outro lado e no limite, a constituir uma sólida teoria da realidade como possível todo—sendo que se limita a ser (e mesmo assim apenas nos seus melhores momentos…) uma ‘teoria do próprio’—uma teoria ou teorização do self—como única “explicação” e único (teórico) fundamento de si mesmo…

Ocorre-me invariavelmente este tipo de reflexão quando me é dado ler textos como aquele a que se refere o título e/ou assistir a espectáculos como o do CENDREV e da Comuna sobre esse mesmo texto: falo do “objecto drâmico” (da autoria de Armando Nascimento Rosa) intitulado “Antígona Gelada”.

Caracterizam-se em geral o que chamo os “objectos drâmicos” de Rosa por esse tipo de «dialogação dialéctica» constante (obstinada? Obsessiva?) com a Tradição que atrás defendo exactamente como modelo ou paradigma amplo de “modernicidade cosmovisional ou inteleccional e crítica” que, quando ocorre (no caso do já citado Rosa como, por outro exemplo, no de uma Maria Estela Guedes, autora da interessantíssim’ “A Boba”, também ela recentemente levada à cena no T.E.C. com encenação de Carlos Avilez e Maria Vieira, no papel-título) vai logrando afastar de nós o ‘espectro dissoluto’ (mas sobretudo o ‘espectro’ dissolutor…) da “Pós-modernidade” no que esta tem de mais a-dialectica e a-dramaticamente inorgânico e sobretudo de epistemologicamente mais ermo, esvaziado e solitário.

Teatro “de ficção científica” (“confessadamente”—como escreve Helena Simões, na crítica que fez à peça no “Jornal de Letras”—inspirado em Philip Dirk e em “Blade Runner” de Ridley Scott dele extraído e como, aliás, desde logo, atestam as epígrafes da edição impressa) a sua «proposta narracional» faz-me, a mim pessoalmente, imediatamente, pensar, sobretudo, em Fritz Lang e na sua fabulosa “Metropolis”.

Porquê? Porque ambas as obras tragam consigo mensagens (designadamente sociais e até políticas) comparáveis ou mesmo, no essencial, coincidentes?

Não.

Porque em ambas se põe desde logo um “problema” de (mais ou menos ousada) «colagem témica e formal» interna, digamos assim.

Aliás, da Obra de Lang (que é, vale a pena recordá-lo, sob inúmeros aspectos, uma Obra absolutamente genial e única na Arte do “Ocidente”) se pode com propriedade dizer o que Frieda Graf, Enno Patalas e Hans Helmut Prinzler, numa obra colectiva dedicada ao criador da personagem do Doutor Mabuse, dela dizem, isto é, que “os filmes [de Lang] tornam necessária uma nova definição de originalidade” (Cf. F. Graf, E. Patalas e H.H. Prinzler, “Fritz Lang”, ed. port. “Livros Horizonte”).

Não se trata, pois, aqui, repito voltando um nadinha atrás, de comparar obras e autores.

Obras ou autores.

Trata-se, isso sim, de observar o modo como, por um lado, o cineasta Fritz Lang e por outro, o dramaturgo Nascimento Rosa tentam redescobrir o que na ficção dita “cientifica” há de latentemente potenciador e/ou multiplicador de significações que a ela são completamente anteriores e até em si mesmos aparentemente ‘exteriores’—isto sem, todavia, esquecer o que, ainda segundo os autores atrás citados, o criador de “Metropolis” veio a pensar dessa sua obra fundamental—a saber: que era “irritante” porque, segundo ele, “tenta resolver um problema real por meios fictícios e inadequados”.

“A colisão infeliz em Metropolis”—quer Lang dizer—“é a de uma linguagem de ficção científica fortemente codificada e de um problema social real”, escrevem ainda os autores do estudo atrás citado, concluindo o seu raciocínio.

Ora, pessoalmente (após ter visto o que—para já não falar do já citado Ridley Scott e do seu “Blade Runner”—um Tarkovski ou um Kubrick fizeram: em “Solaris”, o primeiro e em “2001, Odisseia no Espaço”, o segundo); pessoalmente, dizia, não podia concordar menos com as reservas do próprio Lang a propósito de “Metropolis”.

Ou seja: se há “erro” no filme do Mestre germânico, ele provém, sim, da perspectiva profundamente conservadora, reaccionária mesmo, que o “script” de Thea von Harbou (de resto, como se sabe, membro do partido nazi à época em que o filme foi feito…) contém.

Não do “collage” entre a «proposta témica» abstractamente considerada (i.e. entre o projecto cultu(r)al de desenvolver uma determinada ideia ou até uma determinada tese através da “educada fantasia” que é a Literatura e que é o Cinema ou que é o Teatro) e, dentro destes, especificamente o recurso à ficção dita “científica”—um “genre” onde grandes autores, escritores e cineastas, conseguiram, como se sabe, obras verdadeiramente notáveis e até a seu modo definitivas, de Luciano e do genial Swift a Kubrick passando até por cientistas «autênticos» como Kepler.

De facto, géneros ainda muito frequentemente considerados “menores” como a “sci-fi”, o policial (onde Lang foi, também, como se sabe, grande) ou o “terror” (re/vejam-me por favor a opus notável de um Carpenter, de um Frank Marshall ou de um Tobe Hooper!) constituem, pelo contrário, exactamente porque permitem, quando bem “trabalhados”, obter um curiosíssimo efeito de “falsa inocência” e/ou dialéctica distanciação (ou mesmo para-brechtiano “Verfremdung”) excelentes indutores da reflexão e da crítica, as quais constituem, por seu turno, como se sabe elementos verdadeiramente essenciais no contexto daquele projecto amplo de “actualizar continuamente a própria actualidade” que representa, a meu ver, como digo, a essência mesma da tal “modernidade crítica e inteleccional”, i.e., daquela básica Modernicidade Cultu(r)al que todos, de um modo ou de outro, procuramos e desejamos ver concretizada no nosso Teatro, no nosso Cinema, na nossa Literatura—verdadeiramente modernos, todos eles.

A obra de Rosa pode, pois, considerar-se como inserida nesse amplo projecto de “modernicidade dialéctica” ou “dialectizante” que “cruza” continuamente, rearticulando ininterruptamente entre si, os “géneros”, os motivos e as subjacentes «sugestões» que a Tradição e a Cultura lhes foram elas próprias progressivamente re-imprimindo (e até— porque não?...) quantas vezes sobre-imprimindo.

Pegando numa frase do prefácio de Maria do Céu Fialho à edição impressa de “Antígona Gelada” (“robots” [e] “homens” [ligados entre si] “como uma espécie de relação Deus – Adão de sinal contrário”); pegando, dizia, na frase em causa, eu diria, não seguindo fielmente mas, ao invés, parafraseando consideradamente a ideia nela contida que “Antígona Gelada” começa por repropor uma, a seu modo, meticulosa e mais ou menos profunda reformulação ou «reacomodação cultu(r)al e cosmovisional» do papel tradicional dos “deuses” (no sentido de «o papel desempenhado por um agregado básico de “ancoras sémicas” situadas no próprio coração das culturas tradicionais—“âncoras ônticas e existenciais” essas figurando, diria eu, no limite, a própria possibilidade de um sentido último, transpessoal e até transcultu(r)al, para a realidade», elemento que constituía, como se sabe, tradicionalmente uma das «chaves epistemológicas» da Cultura do “Ocidente”, genericamente considerada).

Onde, por exemplo, a prefaciadora fala, pois, além de a propósito de “distopia”, da tal “criação de Adão por Deus mas às avessas”, permito-me eu falar (cá está a tal a explicação da “não-citação/paráfrase” de que atrás falava!) de—remetendo, ainda, por outro lado, para quanto eu mesmo penso e tenho dito e escrito por mais de uma vez a respeito designadamente da opus beckettiana—de “a-topia” ou mesmo de “nihilotopia” (“naughtopy”—«pensamento atópico» ou «nulotópico»: tendencialmente “nulotópico”?), por um lado e, por outro, especificamente de “uma criação de Adão por Deus mas na ordem (isto é na direcção e no sentido) certos”, ou seja, naquela direcção e naquele sentido exactos que foram eleitos pelo próprio Deus para preencher, segundo o Seu plano original específico, a realidade ontológica e histórica concreta tal como foi (ou como, segundo os que Nele crêem terá sido…) por Ele originalmente concebida.

Como eu admito ser possível vê-la e, sobretudo, em última análise (“en fin de partie”, como diria Beckett…) “entendê-la”, “Antígona Gelada” é um “huit clos” sartreano (lembram-se, por exemplo, de “As Moscas” ou de “Mortos Sem Sepultura”?...) onde os deuses (à semelhança, de resto, do que se passa com os próprios humanos, é importante referir isto…) aparecem como espectros, trânsfugas e desesperados refugiados de um real cuja mecânica lhes escapou, a uns e a outros, definitivamente ao controlo, numa simbólica reformulação/paródia de uma ideia (ou de uma tese?…) envolvendo, por seu turno, uma imagem teórica de realidade onde esta surge como tendo-se definitivamente perdido dos sentidos até dado momento a ela atribuídos—isto é, definitivamente desencontrada daqueles sentidos e daquelas significações últimos para a realidade que a Tradição possibilitava e que, ao invés, a Modernidade e, muito em particular, a Pós-modernidade, fazendo finalmente a sua contraditória entrada na História e na Cultura, fizeram com que irreversivelmente se perdessem.

Tal como eu a vejo, repito, é verdadeiramente capital que uma estável, central, «estratégica» “confusão” entre “Ciência” (como em “ficção científica”) e “sentido” (“sentido” último para as coisas—ou para as coisas e para, digamos deste modo: “as suas pessoas”) permaneça sempre um elemento vivo e actuante de qualquer re/leitura cénica que do texto seja ou venha ordenadamente a ser re/feita.

Afigura-se-me, por outro lado, não menos fundamental para essa… “leituração” extensa (ou extensiva) da peça que pessoalmente se me impõe sempre, de forma insistente, ao espírito que, a par desta, uma outra “confusão” correlativa possa emergir com alguma—com bastante, com suficiente!—clareza (isto, obviamente, se é que uma ambiguidade pode aspirar legitimamente à nitidez e à—mesmo apenas “relativa” ou… “relatival”—clareza…).

Refiro-me à “ambiguidade” que é (em meu pessoalíssimo entender, pelo menos, volto a dizer…) necessário que se estabeleça, na percepção final do texto, entre “liberdade” (numa acepção, aliás, muito próxima da que o termo encerra no contexto do «paradigma teorético» existencialista—sartreano, por exemplo) e “angústia” ou mesmo continuamente impendentes “desespero” e “perda” (isto é, implicando forçosamente “égarement par rapport au sens”, “s’ égarer du sens”, “s’ égarer de l’ autorité procurée naturellement par la levée ou l’ «encaissement critique» individuel et collectif du sens”).

Neste último aspecto, não me escandalizaria, aliás, que se equacionasse expressamente nos trabalhos de uma re/leitura cénica subsequente, do texto, também (e correlativamente) a questão (remetida especificamente para o plano do ontológico ou da “experiência/experienciação concreta e individual do ser”) da “autoridade”: da “autoridade” vista no contexto de uma intencional, cuidada, recontextualização do seu próprio possível sentido “avulso” ou “autónomo” numa dialéctica particular (que, de resto, está, como não é, aliás, difícil reconhecer, muito longe de ser alheia ao próprio texto sofocleano original, até pela estreita ligação da tragédia à reflexão metafísica por via da sua natureza originalmente ritual e cultual particular) em que a “liberdade” com ela viesse pontualmente interagir de forma a delimitar, com a precisão e o rigor teóricos possíveis, as fronteiras e os limites mais «lógicos» da própria acção humana como tal.

A “autoridade” e a “liberdade” vistas, pois, como «emanações orgânicas» do próprio sentido específico das coisas e, ao mesmo tempo, como fundamento “secundário” dele—situando (e explicando!) assim, ulteriormente, aquela sugestão omnipresente de des-ordem e de angústia que o texto traz intimamente “colada” às de “liberdade” e que—é preciso sublinhá-lo com toda a clareza!—a recusa primária da “autoridade” não é, por si só, capaz de mitigar.

Devo dizer já agora… “entre parênteses”, que não me escandalizaria, de igual modo, fosse o que fosse (bem pelo contrário!) que excertos escolhidos (fragmentos “significados”) da própria “Antígona” original de Sófocles (ou de algumas das suas trasladações posteriores como a de Anouilh, por exemplo); do “Hamlet” shakespeariano (sublinhando especificamente os momentos nos quais a in-decisão e a des-esperançada irresolução marcam o próprio ritmo físico, material, do genérico desespero presente no palco) ou ainda (entre muitas outras possibilidades de agregar ao texto de Rosa “câmaras de ressonância” potenciadoras dos vários sentidos “ocultos” nele contidos) do desmesurado e genial “Dantons Tod” de Büchner onde não é difícil achar símiles e arquétipos cultu(r)ais valorizadores da (meta?) compreensão possivelmente ideal do texto.

Ou ainda (porque não?) de um Kleist (“Michael Kohlaas”, sobretudo) assim como projecções de «slides» com imagens tendencialmente abstractizantes (fragmentos de Rotko, de Bacon, de H.G. Giger, etc.) passadas em movimento (ultra) rápido de modo a persistirem na “retina mental” do espectador sobretudo como “impressões” tendendo abertamente para a abstracção, sugerindo adicionalmente o turbilhão e a vertigem—a angustiante “ilegibilidade” final (do próprio real?)—em fundo.

Em termos globais, o que há, a meu ver, de sobretudo interessante (e concretamente de original e de estimulante!) em “Antígona Gelada” é, desde logo, a possibilidade de assistirmos “em directo” à desintegração (pós?) moderna total da realidade—vista essa des-integração total de algum modo reconhecível pelos olhos dos próprios deuses, que o mesmo é dizer, a possibilidade “ideal” de testemunharmos a morte definitiva do que poderíamos chamar o sentido do sentir ou para o sentir (e para o pensar: para todo e qualquer pensar como para todo e qualquer Conhecer) do próprio lugar—e até concretamente do ângulo!—em que se encontra esse mesmo sentido, definitivamente perdido já, pois, das puras formas a que estava tradicionalmente obrigado a conferir regularmente organicidade e (reconhecível, possível) fundamento.

À imagem do já citado “Solaris” de Tarkovski (como, por outro exemplo, à do “ExistenZ” de Cronenberg; ou do fabuloso “Spider” do mesmo Cronenberg; como em “Memento” de Christopher Nolan, para citar apenas alguns exemplos notáveis de “subcultura inteligente” e “epi-cultura esclarecida”, uma e outra ao serviço da reflexão filosófica mais estruturalmente contemporânea); como em todos esses “casos”, dizia, interessa na peça de Armando Rosa (a meu ver, pelo menos...) o recuperar possível dessa inquietantíssima sugestão de errância e de total, irremediável, desenraizamento e absurdo que é tanto mais moderno e pungente quanto é o próprio sentido (o “sentido” das—ou para as—coisas e para as pessoas) que, incapaz de recolar-se adequadamente aos objectos de que mais ou menos bruscamente se soltou se questiona, agora, na mais completa e irremediável das solidões, a si próprio.

Importa, dizendo de outro modo (e tendo especificamente em vista a questão particular da encenação em concreto) valorizar os ecos subtilmente hamletianos e até dantonianos (já referi o caso muito concreto e específico do “Danton” de Büchner) que a solidão e a impotência dos deuses emitem tão contínua quanto, sobretudo, desesperadamente para o exterior da própria “anedota” contada em palco.

O que é importante é, numa palavra, volto a dizer, fixar muito bem essa imagem ou essa ideia da angústia provocada pela perda consumada de fundamento(s) para a realidade—vista a referida “perda”, não me canso de referi-lo, pelos “olhos” mesmos desses (descartados, desencantados, imprudentemente rejeitados) fundamentos—tudo testemunhado, pois, como diria um inglês (e como titulava um dos meus autores mais estimados, Joyce Cary) “straight from the horse’s mouth”…

Seremos (seríamos?) vendo a peça deste modo e por este (hipo) tético ângulo analítico e crítico, conduzidos para a suprema ironia susceptível de ser assim enunciada—ou descrita: o sentido último para a realidade existe: está ali mesmo a um passo de nós, inteiramente ao alcance do nosso olhar e da nossa reflexão, da nossa ponderação (os deuses estão ali, existem, “vemo-los” distintamente, quase podemos tocá-los, ainda que nos esteja vedado—como nos filmes “de terror”…—a possibilidade de os avisarmos da presença dos restantes personagens e, muito em particular, dos perigos e ameaças que estes foram entretanto aprendendo a trazer para si mesmos como para os próprios deuses.

Os deuses existem, pois, dizia: basta olhar para lá, para o palco diante de nós, para confirmar a sua presença—melhor dizendo: a sua encoberta ‘sombra organizadora’ final, o seu oblíquo ‘eco’ referenciador que se escuta mais ou menos surdamente ainda em cada um daqueles nomes/personae nossa História mental e cultu(r)al comum; em cada um daqueles arquétipos identitários de algum modo absolutos, inteiros, puros (Antígona, Polinices, Ismena, Tirésias), agora simples entidades avulsas e em si mesmas completamente absurdas, meros seres errantes, solitários, confundidos, assustados, animados alguns com a mera coragem da angústia, da solidão e do desalento sem esperança; completamente perdidos do seu próprio sentido original e muito em particular do sentido original do respectivo “plea”, presente no arquétipo sofocleano que foi a sua “pátria ontológica” e de que se perderam—e nós com eles!—ao que tudo indica de forma definitiva…

Os deuses estão (andam ainda vagamente por…) “ali”, então; como, porém, ninguém (a começar pelos próprios…) crê já nesses deuses como nesse sentido ou sequer na sua própria possibilidade, os deuses (e o sentido com eles) acabam completamente exaustos, desencantados, inteiramente rendidos, por resignar-se à sua própria (in?...) consequente solidão/inexistência, perdendo-se, desse modo, absurdamente, a própria possibilidade de seguirmos todos, indivíduos, sociedades e “cultura(s)”, isto é, seguirmos todos enquanto “História” e enquanto “Civilização”, possuindo um real consistente e «orgânico» para nos referenciar e guiar.

Não porque à partida ou em tese ela, possibilidade, possa admissivelmente não existir, mas por nossa própria, autónoma, idiótica—irreflectida—(ab) surdamente “prometaica” (insensata) iniciativa, eco natural da “hybris” grega original…

Neste quadro, a tragédia (metafísica, ontológica, existencial) da “Pós-modernidade” seria, pois, não uma qualquer gratuitidade ou mesmo fatalidade falsamente inerentes à estrutura intrínseca do próprio real mas, na verdade, a emergência de um “erro” ou de um “defeito” secundário do pensar: algo que tem, pois, muito mais a ver (ou que tem tudo a ver?) com o modo como julgamos “conhecer” e entender a ‘realidade’ e em caso algum, volto a dizer, com qualquer atributo ou propriedade autenticamente estrutural e essencial—“elemental”— desta.

Subliminarmente, teríamos, cumulativamente, aí a redescoberta crítica de outro motivo ainda de inspiração não menos reconhecivelmente clássica: o da já referida “hybris” trágica que leva os homens e as sociedades a desafiarem levianamente o poder agregador e significador dos “deuses”—aqui redescobertos, eles mesmos, então, como já por diversas vezes tenho afirmado, como o tal sentido último para a realidade que a pós-modernidade nos levou perversamente a hipotecar a paradigmas de “liberdade” “pura” onde essa mesma ideia de liberdade deixou, porém, já de ser aquilo que teticamente a Tradição fizera, estável e caracteristicamente, que ela tivesse sido durante tanto tempo cultu(r)al e histórico: uma forma globalmente reconhecível de discorrer sobre a realidade e de sobre ela organicamente teorizar.

…Não-raro, ela mesma “liberdade” emergindo na História e na Filosofia com a forma epistemologicamente ideal e perfeita de uma autêntica teoria da realidade em si mesma.

Seria neste preciso contexto que seria, então, necessário re/ver, por outro lado, por exemplo, a questão da androginia e da inversão/in-fixação sexual sobre a qual discorre, como se sabe, continuamente o texto de Nascimento Rosa.

Isto é, neste quadro conceptivo, uma e outra apareceriam, então, não como meras referências avulsamente circunstanciais à “actualidade” mais anedótica e mais imediata mas fá-lo-iam, de forma contextualizadamente necessitária, na qualidade de expressão simbólica firme da própria “fractura ontológica”, existencial e identitária resultante da perda de contacto último entre a realicidade e “o seu sentido”.

Numa palavra: entre a realicidade e a sua própria identidade.

Entre a realicidade e (insisto) a possibilidade última (“ultimate”, “ultimativa”) de um sentido reconhecível para si.

Q.e.d…

………………………

Uma dúvida final: “Antígona Gelada” não é exactamente tudo quanto atrás digo e escrevo dela?

Admitamo-lo: cada um vê sempre a peça ou o quadro (e lê o livro ou vê o filme) que quer ler e ver, é sabido.

A verdade é que o simples facto de um livro ou de uma peça teatral e de um filme, um poema, etc. possibilitarem o serem vistos e lidos exactamente do modo como queremos, em última instância, vê-los e lê-los diz já seguramente alguma coisa de evidentemente considerável e com certeza relevante sobre o seu mérito específico enquanto obras de Arte e enquanto objectos de algum modo capitais, não apenas do ponto de vista da construção e do aperfeiçoamento das formas ideais da nossa própria “inteligência da realidade” genericamente considerada como, num plano mais pessoal e até mais íntimo, essencial à reestruturação e contínua reforma das nossas identidades individuais e colectivas—das nossas identidades ou conformidades cultu(r)ais—que todos, de um modo ou de outro, procuramos sempre no limite manter ao menos a ilusão, tão estável quanto possível, de possuir…

Carlos Machado Acabado
Carnaxide em 22.01.09

Publicado a 2 de Fevereiro de 2009

Carlos Machado Acabado (n. 1945), lic. em Filologia Germânica. Professor efectivo do ensino secundário (apos.). Ensaísta ("Seara Nova", "O Professor", "Jornal da Educação", etc.), artista plástico (presente em diversas exposições: Bienal de Artes Plásticas da Festa do "Avante", exposições individuais, colectivas, etc.). Tradutor.

“A colagem é não só Arte como a inteligência e o entendimento da Arte por excelência”.

Porque o afirma o Autor? Porque, segundo ele, se trata da única forma de expressão artística em que o ponto-de-vista do observador (e nesse sentido, ele mesmo, observador…) se convertem em parte integrante, indissociável do próprio objecto homenageado: uma única realidade no momento angular do tributo ou da homenagem estética e cognitiva em geral.

No momento angular da crítica.

Do instante vertic(i)al do juízo.

Na colagem (dessa magnífica Hanna Höch ao absoluto Picasso) passou, devido justamente ao (excelente!) motivo em causa, (objectivo supremo de expressão e fruição!) a ser virtualmente impossível distinguir o ‘objecto’ do respectivo ‘sujeito’—e vice versa (“Transforma-se o amador” e por aí fora...).  

Por isso exactamente, pareceu ao Autor indispensável cunhar dois novos vocábulos a fim de referir cada uma dessas entidades (ele e o seu juízo comprometido: ‘engagé’ sobre as coisas) de modo a exprimir, com o maior rigor possível, os novos papéis que ambas essas entidades desempenham no contexto do acto, com a “invenção” da colagem, (finalmente) mágico—ou finalmente fusorde olhar.

Refiro-me aos termos “objeito” e “subjecto”: uma obra que se deixa lucidamente penetrar e invadir, desse modo ideal, pelo olhar apropriador e (na melhor das hipóteses) ‘inteligentemente apaixonado’ de alguém é, pode dizer-se, o “objeito” perfeito, ideal, desse olhar: a função ou a vocação naturais do mesmo. 

Já este, ao fazê-lo, se converte (levando consigo, no acto, o indivíduo que o suporta ou medeia) no “subjecto” ‘exacto e modelar da sua própria admiração e respeito’.

Uma colagem é, pois, no limite, é uma maneira exemplar, fácil (e quase perfeita) de (desapare)cer.

                                                                              Carlos Machado Acabado