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ALGUMAS LENDAS DA REGIÃO DE LAMEGO,
em especial de mouras encantadas
Coligidas por Fernanda Frazão

Quando se fala de mouras encantadas, a nossa mente transporta-nos imediata e inevitavelmente para os maometanos que, durante várias centenas de anos, coabitaram com os cristãos dos reinos peninsulares. Moura significa, para qualquer um, uma bela mulher, de rosto tapado por véus diáfanos. Nesta região, a designação associa-se provavelmente à bela Ardinga apaixonada pelo cavaleiro cristão, amor fatídico que recorda outras grandes histórias de amor como Tristão e Isolda ou Pedro e Inês.

Os teóricos destas coisas, à falta de melhor, dividiram os relatos lendários numa espécie de classificação, que nunca o foi. Uma das grandes responsáveis fui eu, há uns trinta anos, ao antologiar e reescrever umas dezenas largas de lendas nos seis volumes intitulados Lendas Portuguesas. Sem ter a quem recorrer, na época, não me apercebi de que a «classificação» de Leite de Vasconcellos para os dois volumes de Contos e Lendas, não passava de um rascunho para a organização dos textos em livro. Assim, essa «classificação» adquiriu uma espécie de estatuto legal e vem sendo repetida impensadamente por muita gente com responsabilidades, mesmo depois de eu ter expressado publicamente esse erro na introdução a Passinhos de Nossa Senhora, Lendário Mariano, essa outra antologia dedicada às aparições da Senhora em Portugal, introdução na qual refiro que as lendas me parecem ser, na quase totalidade, um fenómeno de carácter mítico-religioso. E se, há dois anos, assim pensava, as leituras e os estudos em que tenho participado fizeram-me dar um passo de gigante, absolutamente fascinante, que nos leva a conhecer os interesses básicos da vida dos nossos avós de há quase 30 000, 7000, 3500, 1200 anos. Através dos estudos de um grupo de investigadores europeus (linguistas, geneticistas, arqueólogos, paleontólogos, historiadores), o grupo da «Teoria da Continuidade Paleolítica», criado a partir das investigações do linguista italiano Mario Alinei, temos hoje à nossa disposição um paradigma que responde a todos os becos sem saída e às perguntas sem respostas que a ciência histórica não tinha como resolver. E como, para além de investigadora, sou também, e especialmente, editora orgulho-me de ser a entidade que vai dar voz a estes estudos em Portugal e de já ter editado três extraordinários trabalhos nesta área, de autoria da Drª Gabriela Morais, estando nós duas a tratar do quarto, dedicado exactamente ao mundo das Mouras Encantadas.

Do ponto de vista de uma nação, as lendas são, muito provavelmente, o género literário oral mais importante. Em sentido restrito, ligam uma população a um local através de alguém, ou de algum facto, que só a esse grupo humano respeita e interessa, por reflectir um gesto, uma palavra, um acto, que identificam entre si os indivíduos desse grupo. Pouco a pouco, vão-se fazendo ligações de tipo familiar e de outros tipos de interesses e os grupos vão-se alargando, levando consigo as histórias importantes do seu passado, histórias essas que foram o garante da sua sobrevivência nos tempos mais difíceis da história da humanidade. Assim se forma uma nação, que é um grupo humano com histórias e interesses comuns reconhecíveis por toda a gente que o compõe. Entre nós, essas histórias e interesses têm muitos milhares de anos, muitos mais do que o país político e os seus quase 900 anos. A lenda é o vestígio do mito antigo, é o caco da memória, e o seu conteúdo é importante por atravessar gerações.

É aqui que entram as mouras e os mouros das nossas lendas.

Mas, antes de continuar, há que fazer algumas precisões quanto à terminologia. Os muçulmanos que foram chegando à Península Ibérica eram provenientes da zona da Mauritânia e designados Mauros (igual a «escuros») Segundo o investigador Francesco Benozzo, a palavras mauros é de origem grega e não é crível que tenha dado origem à palavra mouros, que só existe na Península. Isso provocou, mais tarde, a confusão com a palavra mouros, que já aqui existia. Essa confusão de termos foi acabou por servir para fomentar o ódio ao mauro, leia-se, infiel, por parte da elite religiosa. Daí que essa confusão ainda hoje se mantenha para designar duas realidades culturais completamente distintas, já que, apesar de tudo, elas têm longínquos pontos de ligação, pois alguns dos povos originais da Península vieram do Norte de África, segundo estudos alguns geneticistas.

Ora, pode bem dizer-se que este tipo de lendas de mouras encantadas possui um carácter verdadeiramente nacional, ainda que transcenda, evidentemente, o nosso território. De Norte a Sul, mesmo em zonas onde nunca os muçulmanos se instalaram, há lendas de mouras e mouros praticamente iguais. Em fontes e em rios, em pedras e em cavernas, em árvores e em arbustos. São aparições que prometem fortuna a quem mantiver o segredo que deve ser mantido até estar cumprido um qualquer acto que se requer. São construtores de megalitos. São gigantes que empilham penedos ou trabalham metais com um único instrumento que se atira para, no monte fronteiro, um outro gigante poder, por sua vez trabalhar. São escavadores de montanhas, criando labirintos subterrâneos para se escapulirem no perigo. São gente como nós, que precisa, de quando em quando, de uma parteira, que acaba bem recompensada por trazer à luz do dia mais um mourinho. Mas são também gente, que se transforma em vários animais, que põem à prova humanos suficientemente corajosos que, desencantando os tristes prisioneiros da eternidade, recebem um tesouro inimaginável. São gente do Sol e do calor, gente agradecida pela colheita farta… Vivem num mundo subterrâneo paralelo: são a moirama, são, afinal os nossos antepassados mais longínquos, a memória viva de épocas humanas concretas, os textos mais antigos da portugalidade, os antepassados das fadas e dos gnomos de outras zonas do mundo. São os mais remotos celtas. São os MRVOS, mroos, palavra celta que designa morto, ser sobrenatural.

A cada dia que passa surgem novas provas científicas, nas mais diversas áreas – da genética, à arqueologia e à linguística – da enorme antiguidade, unidade cultural e primazia europeia do nosso pequeno rectângulo atlântico. Resumindo, dizem os arqueólogos, os climatólogos e os zoólogos que, na última glaciação, a maioria da humanidade, umas 5000 pessoas, sobreviveu por aqui, naquilo a que chamam o refúgio ibérico. Dizem os linguistas que a nossa língua tem características do celta mais primitivo e que essa língua nunca aqui chegou, porque daqui partiu, afinal, dando origem, com o tempo, a muitas das línguas europeias, incluindo o latim. Dizem os geneticistas que somos antepassados de Irlandeses, Escoceses e até, de Noruegueses.

Do ponto de vista religioso, pode afirmar-se que, em Portugal, existe uma linha ininterrupta das mesmas crenças, desde a mais remota antiguidade. Adoradores da Terra-Mãe, personificada na serpente – a Gabriela Morais e eu fizemos há anos um levantamento de umas centenas largas de insculturas/esculturas de serpentes, de várias épocas – passou-se à Grande Deusa-Mãe, a Deusa dos Olhos de Sol – como lhe chamou um arqueólogo e cujo exemplo são as alentejanas placas de xisto – a Ísis (sé de Braga), e, com o cristianismo chega-se a Nossa Senhora, essa que em Portugal nunca é a Virgem Maria, mas sim a Senhora. E a Senhora é a herdeira directa da Moura Encantada. Surge nos mesmos locais, com o mesmo resplendor, também pede, por vezes, segredo, providencia milagres que continuam a ideia da fertilidade e da abundância/riqueza. É a mãe, é a avó, é a antepassada.

Mas esta região tem também outros antepassados: D. Tedo e D. Rausendo, passando ainda pela memória do «Gigante da Ucanha».

Se os gigantes são considerados, pelos especialistas, versões masculinas das mouras, D. Tedo e D. Rausendo, improváveis historicamente, são os heróis míticos fundadores desta região de Portugal.

Bisnetos do rei Ramiro II e da moura Zaida – «Lenda de Gaia», e «Lenda da Praia de Âncora» – D. Tedo e D. Rausendo envolvem-se em lutas com mouros e paixões amorosas com mouras (veja-se a «Lenda de Ardinga» e a de «Val d’Amil»). São conquistadores e fundadores de terras (Paredes da Beira e Granja do Tedo) e D. Rausendo é a base da linhagem dos Távoras, nome que adquire a partir do rio onde salva o irmão e faz a matança dos mouros habitantes de Paredes. Ora, sabendo nós que av, de Távora, é a raiz mais antiga da língua primitiva celta e tem o significado de avô/avó, antepassado, não será preciso acrescentar mais nada.

Por outro lado, e remontando à história de Ardinga, a moura, e D. Tedo, o cristão, especialistas como o italiano Francesco Benozzo afirmam, ao estudar as canções de gesta e os romances medievais, que os cristãos conquistadores têm necessidade de ter amores com mouras – no sentido da dama autóctone – porque a posse da Senhora legitima a posse da terra. Não esqueçamos que os Celtas não tinham propriedade privada e que as mulheres celtas eram as detentoras por direito da terra (daí eu afirmar que o nosso 1º rei, não foi rei, mas rainha), a qual terra, em caso de divórcio, lhe era devolvida. Ora, possuir a moura/senhora equivalia à posse da terra (quem sabe não foi essa a razão de Egas Moniz ter deixado várias viúvas). Isto constitui uma forma racionalizada de apropriação e transformação do mito da Terra-Mãe.

Este mesmo mito é transparente na «Lenda do Cárquere». A imagem de Nossa Senhora, que Egas Moniz é mandado desenterrar, é nada mais, nada menos do que a imagem de uma deusa – eventualmente Diana ou Ísis – que a arqueologia estudou. A leitura desta lenda revela também todos os requisitos essenciais ao passado de um rei fundador, mas não é isso que está aqui em causa.

Actualmente, a análise do conteúdo das lendas de mouras encantadas tem-nos possibilitado – à Gabriela Morais e a mim – um recuo aos tempos pré-históricos da humanidade que nos habitou, de tal modo que já conseguimos chegar às crenças básicas do paleolítico deste refúgio ibérico, e à identificação da evolução dessas mesmas crenças ao longo das várias épocas pré-históricas e históricas. Por outro lado, estamos a desenvolver paralelamente estudos de outros lendários nacionais – Gatelo e Reis Míticos – que se têm revelado muito elucidativos quanto à perenidade do ser e do estar do português.

Lisboa, 2008-09-04

Fernanda Frazão

 

INDEX

Britiande

As mouras encantadas do castelo de Lamego

Ardinga

A lenda de Ardínia (Ardénia ou Ardinga)

A lenda de Alcanides

A lenda do Ladoeiro do Castelo de Lamego

O sardão de Cárquere

A Senhora da Lapa

A Lenda da Ponte de Carcavelos

Nossa Senhora do Cárquere

Nossa Senhora do Amparo ou dos Meninos

Nossa Senhora do Caifão

A matança de Val d'Amil ou a lenda dos Távoras

O Lamego

A Torre da Ucanha

O gigante da Ucanha

Bibliografia

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