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ALGUMAS LENDAS DA REGIÃO DE LAMEGO
Coligidas por Fernanda Frazão
Ardinga

Conta uma velha lenda a história de Ardinga, a moura, filha do emir de Lamego.

Vivia Ardinga no alcácer com seu pai e criados. Os dias decorriam mansos e Ardinga era feliz. Sempre que podia, especialmente quando os jograis passavam pelo palácio, entregava-se ao seu passatempo favorito: ouvir histórias.

Os jograis, que andavam de terra em terra, de castelo em castelo, sabiam todas as notícias guerreiras, todas as intrigas, todos os amores. Também sabiam as velhas histórias do passado, às quais por vezes aumentavam pormenores numa ânsia de contentar os ouvintes. Foi por seu intermédio que muitos factos antigos se tomaram lendários, correndo primeiro de boca em boca e, mais tarde, quando a escrita se laicizou, perpetuando-se em manuscritos onde se misturava realidade com fantasia.

Foi pelos jograis que pousavam frequentemente no alcácer de Lamego que Ardinga conheceu a história de D. Tedo. Primeiro soube que era um cristão que com seu irmão D. Rausendo combatia ferozmente a gente da sua raça, e odiou-o por isso. Depois, pouco a pouco, foi conhecendo cada acto de audácia do cavaleiro, descobrindo o roteiro de seus passos, peregrinando jogral a jogral os feitos do homem que não limitava a sua vida à espada, antes a povoava, como à terra, de árvores, de gentes, de templos. E um dia Ardinga soube que não mais o odiava, antes o amava.

Uma ideia despontou ardente no seu espírito: conhecer realmente D. Tedo. E não descansou mais enquanto não arranjou solução para o seu desejo, que se tomara fixo e irremediável. Pensou na solução horas sem fim, e, a certa altura, chegou a concluir que a única possibilidade era um ataque do cristão ao seu próprio alcácer. Ardinga perdeu o sono, e nas muitas noites de insónia, às voltas no seu divã de virgem, via a loucura sorrir-lhe como quem chama, como quem conquista uma alma gémea.

Assim, no dia em que a exaltação de Ardinga atingiu aquele estado em que se deixa de caber em si e no mundo, a moura fugiu levando consigo uma velha amiga de infância. Durante três dias e três noites, correram por montes e vales, sem desfalecimento e com uma alegria tão grande que a secreta harmonia da natureza acordava no coração da moura sinfonias maravilhosas de som e cor. Ardinga procurava D. Tedo nas locas das feras, nos ninhos das águias, em todos os lugares onde sabia possível encontrá-lo. Mas Ardinga não o achou em lado nenhum, e quando deu por si estava junto ao eremitério de Gelásio, o anacoreta, em São Pedro das Águias, junto ao rio Távora.

Mortas de fome e de cansaço, agora que a esperança de achamento as abandonara, entregaram-se ambas aos cuidados do velho eremita. E, para consolo da sua desesperança, acharam por bem, as mouras, trocar a sua busca sem fim pela força do baptismo de Cristo, que pediram a Gelásio.

A Alboacém, o rei de Lamego, porém, chocara a partida de Ardinga. Inconformado com o seu destino solitário, que um cavaleiro, inocente, provocara, AIboacém partiu com a sua hoste atrás da filha fugitiva. Seguiu seus passos por montes e vales, ouviu as sinfonias maravilhosas que a sua esperança deixara pelo caminho das locas das feras e dos ninhos das águias, e chegou ao eremitério de Gelásio.

Aí encontrou Ardinga e a companheira, não já as mouras que tinham deixado Lamego, antes as recém-cristãs que Gelásio acolhera. E o pavor da solidão, agora feita certeza, enlouqueceu Alboacém, que sacou do alfange e, de um golpe, cortou a cabeça de Ardinga. Insatisfeito, porém, com aquele acto que sabia não lhe devolver a calma que encontrara no amor da filha, o mouro pegou nos despojos da sacrificada e atirou-os à torrente do Távora. Depois, partiu para lutar eternamente com os cristãos, esses infiéis que tinham corpo de guerreiro, como ele, e espírito de ladrões de almas.

D. Tedo soube deste crime quando tomava banho num pego do Távora, porque o corpo de Ardinga veio ter com o seu, finalmente encontrado. Pegou nela e seguiu, gota a gota, as gotas de sangue corrente acima até chegar ao eremitério de Gelásio. Aí D. Tedo ajoelhou frente ao anacoreta. Entregou-lhe o corpo, ordenou a sua sepultura, fez voto eterno de celibato. Partiu para a guerra contra Alboacém. Haviam de lutar ambos, eles que estavam possuídos pela mesma força incontrolável que lhes dera o corpo de Ardinga quando o tinham tocado.

Diz a lenda que se perseguiram como feras esfomeadas até que um dia encontraram-se numa batalha só sua nas margens de um riacho. Porque terá sido a sorte das armas favorável ao mouro? Porque morreu D. Tedo?

In: Frazão, Fernanda, Lendas Portuguesas da Terra e do Mar. Lisboa, Apenas Livros, 2004, pp. 92-3. (Fonte: Costa, Américo – Diccionario Chorographico de Portugal Continental e Insular. Hidrographico. Histórico. Orographico. Biographico. Archeologico. Heráldico. Etymologico. Com prefácio do Dr. José Joaquim Nunes. 12 vols. Vila do Conde, ed. do autor, 1929/1949. )

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