COLEÇÃO PONTE VELHA DE LIVROS PORTUGUESES:
UMA CONVERSA COM FLORIANO MARTINS

ÁLVARO ALVES DE FARIA

Cinco livros de poesia. Disso tenho certeza. Cinco livros de poesia estão sendo lançados no Brasil. De poetas portugueses. Pertencem à coleção “Ponte Velha”, da Escrituras Editora, de São Paulo, e foram organizados pelo poeta Floriano Martins, de Fortaleza, que, atualmente, é curador da Bienal Internacional do Livro do Ceará.

País árido em relação à poesia, estes livros surgem de vez em quando neste cenário desolador brasileiro, o que pode representar um alento. Floriano Martins, além de poeta, tradutor e ensaísta – editor, com Claudio Willer, da Agulha Revista de Cultura - tem se debatido para colocar bons livros nessa coleção que se faz importante, uma espécie de mapeamento da poesia de Portugal, reconhecida como uma das melhores de todo o mundo. É mais ou menos assim: país sério tem poesia séria. A literatura faz parte. Já diante do abandono, a literatura e a poesia são apenas uma parte dos destroços de um feudo dominado por alguns delinqüentes.

Não é o caso destes livros. Muito pelo contrário. Estas obras oferecem ao leitor brasileiro uma idéia da literatura de Portugal, especialmente no que diz respeito à poesia.

Floriano Martins é um batalhador em todas as frentes. E as frentes, hoje, são verdadeiras trincheiras numa guerra desigual contra a mediocridade institucionalizada num país sem rumo. No que diz respeito à Literatura – e especialmente à Poesia – o retrato é deprimente. O Brasil é um país de quinto mundo, mas os discursos oficiais da ignorância oficial querem que o país seja instalado no primeiro mundo, como num passe de mágica ou num golpe, talvez a maneira mais fácil.

Mas felizmente ainda há resistência. Floriano, a observar os céus de Fortaleza, é um dos que caminham com projetos culturais de absoluta seriedade. Basta ver estes livros de poetas portugueses lançados agora no Brasil, pela Escrituras Editora, de São Paulo, com sua participação direta já que, batalhador que é – repita-se – além de poeta formoso, leva a sério iniciativas que deverão merecer sempre elogios de um país à deriva.

Trabalhos assim deveriam ser repetidos sempre. Agora, Floriano anda às voltas com a Bienal Internacional do Livro no Ceará, que consome seu tempo em tarefas quase impossíveis de cumprir no país do faz-de-conta, porque aqui tudo faz-de-conta. Mas o faz-de-conta nem sempre vence neste cenário angustiante. Enquanto existirem poetas assim como Floriano Martins será possível sonhar com um país melhor, com uma Literatura melhor, com uma Poesia melhor, com um Ser Humano melhor.

AAF Floriano Martins: mais cinco livros de poetas portugueses que você organiza para a Escrituras Editora, de São Paulo. Qual o significado prático disso nesse decantado intercâmbio cultural entre Brasil e Portugal?

FM O primeiro aspecto a destacar é o fato da Escrituras haver optado pela criação de uma coleção dedicada à literatura portuguesa, pelo que há de substantivo em tal aposta por uma sistematização. Não há dúvida que a partir daí é possível criar uma referência editorial, ao contrário de edições avulsas. A prática de edições avulsas, de certa maneira, reflete uma falta de norte do mercado editorial. Um segundo aspecto a evocar é a já consolidada parceria com o Ministério da Cultura português, sem a qual provavelmente esta continuidade editorial não teria sido possível. Contudo, mesmo considerando a constância com que a Escrituras vem publicando autores portugueses desde 2003, não creio que seja correto falar em intercâmbio cultural entre Brasil e Portugal.

AAF Há reciprocidade nisso?

FM Não há reciprocidade em nenhum dos dois aspectos aqui mencionados, ou seja, não há apoio do nosso Ministério da Cultura para a publicação de autores brasileiros em Portugal, nem há ali (e não diria por conseqüência) sistematização na presença editorial de nossos escritores. Por outro lado, tem sido quase insignificante a recepção dada pela imprensa a este fato editorial. Mantém-se no Brasil certa fixação por modismos e por aspectos pitorescos, alguns até bem atléticos, o que acaba por conduzir a uma atrofia do ponto de vista de percepção do objeto estético em seu valor intrínseco. Naturalmente não é este o espírito que norteia a aposta editorial da Escrituras e sua coleção “Ponte Velha”.

AAF O que a gente vê, na verdade, não é uma política até mesmo de reciprocidade de lançamento de livros entre os dois países. O que se vê, mesmo, são iniciativas isoladas e pessoais de poetas que levam seu trabalho poético numa verdadeira batalha tantas vezes sem apoio de ninguém. Isso pode um dia mudar?

FM Mudar ou não, qualquer que seja o assunto, é decorrência do estímulo que se dá à própria vida, em um sentido mais amplo. Não discuto qual será o futuro das relações culturais entre Brasil e Portugal. Interessa-me, sobretudo, a aposta que intelectuais, de uma margem e outra do Atlântico, fazem no sentido de estabelecer algum diálogo. E sinceramente não vejo aposta alguma.

AAF Esses cinco poetas portugueses, o que eles representam em Portugal, na poesia portuguesa, e por que mereceram entrar na coleção “Ponte Velha” da Escrituras?

FM Há duas maneiras de representação: aquela que toca a superfície do fato editorial e seus reflexos imediatos: vendagem, prêmios, loas de mídia etc. E um segundo plano de representação, que atravessa o embate entre tradição e ruptura, e alcança um sítio de sólido prestígio ao longo dos tempos. Evidente que há ainda uma terceira maneira, sendo esta de não-representação, por equívoco ponto de cegueira que não permite a descoberta de certos autores e/ou obras. No caso específico da coleção “Ponte Velha”, há que buscar um equilíbrio entre essas modalidades todas, sem esquecer em momento algum que grande parte dos autores propostos é formada por uns ilustres desconhecidos do leitor brasileiro. Há casos em que são desconhecidos até mesmo dos poetas brasileiros. Sem falar na imprensa, cujo conhecimento de causa raramente vai além do que rezam os releases apresentados pelas editoras. Os cinco poetas que mencionas são Saúl Dias (1902-1983), Carlos Garcia de Castro (1934), Maria Teresa Horta (1937), António Barahona (1939) e José do Carmo Francisco (1951). Eu diria que há três casos de reconhecimento tardio e duas ousadias editoriais.

AAF O que você pode dizer sobre cada um deles?

FM Saúl Dias representa a corrente expressionista e à sua poesia soma-se também a obra plástica, que assinava como Julio (a rigor, este era seu nome civil, cabendo ao poeta o pseudônimo). Ligado ao grupo Presença, na primeira metade do século XX, Saúl Dias – irmão de José Régio – alcançou, com sua poesia, uma leveza e cadência que em muito o aproxima do brasileiro Manuel Bandeira. Por sua vez, Maria Teresa Horta talvez seja algo conhecida entre nós pela polêmica gerada à altura da publicação de Novas cartas portuguesas (1971). Dela há também uma outra antologia publicada no Brasil neste mesmo ano. Integrante do grupo “Poesia 61”, ao lado de nomes como Luiza Neto Jorge e Fiama Hasse Pais Brandão, sua poética constitui um dos fortes momentos do erotismo na lírica portuguesa. Também de acentuado sentido erótico é a poesia visionária de António Barahona, embora aqui haja uma presença mística que lhe conduz por trilha bem distinta. São, por assim dizer, três vozes já consolidadas na lírica portuguesa. A seu lado, apresentamos ao leitor brasileiro dois poetas – Carlos Garcia de Castro e José do Carmo Francisco – que estão, embora de maneira distinta e de distintas gerações, impregnados de certo espírito cronista. Cada um a seu momento tece uma crônica de lugares e circunstâncias tocados pela memória, nos dois casos sem o menor vestígio de saudosismo.

AAF Além dos cinco livros de poesia há outros dois…

FM Sim, ao lado destes cinco poetas há ainda dois outros autores que a Escrituras lançou conjuntamente. Refiro-me aos livros de Luiz Pacheco (1925-2007) e Maria Estela Guedes (1947). O primeiro é uma antologia de narrativas, crônicas e entrevistas deste personagem essencialmente polêmico da literatura portuguesa, libertino, audaz, herege, um anti-herói temido por sua sinceridade desbocada. Este livro – O espelho libertino – constitui um mapa valioso de revelações do caráter da intelectualidade portuguesa. O segundo – Tríptico a solo – recolhe três peças de teatro de uma escritora já conhecida no Brasil pelo papel fundamental que desempenha como diretora do TriploV, publicação virtual que se configura como a maior fonte de difusão, em Portugal, da literatura brasileira.

AAF O que há pela frente dentro dessa coleção e existe alguma coisa além do Atlântico para os poetas brasileiros, no que diz respeito ao seu trabalho pessoal nessa área?

FM Há um outro aspecto que merece destaque na configuração da coleção “Ponte Velha”, que diz respeito ao convite feito, a cada livro, a artistas plásticos brasileiros para a realização de capa e ilustrações internas. Excetuando casos em que se verifica a condição dupla de poeta e artista plástico (tais como Saúl Dias/Julio, ou livros anteriores de Cruzeiro Seixas ou Ana Hatherly, para citar apenas dois), participaram já da coleção nomes como Ivald Granato, Hélio Rôla, Sérgio Lucena, Eduardo Eloy e Nelson Magalhães Filho. No tocante ao desdobramento da coleção, definimos já os autores para 2008, e os livros se encontram em fase de preparação. Não tenho, por outro lado, nenhum projeto de difusão da poesia brasileira destinado a Portugal. Talvez deva surgir um poeta português interessado no tema. Ou talvez devamos esperar que um outro brasileiro se aventure por esta seara. No que pode avançar este projeto da Escrituras é na presença que terá na 8ª Bienal Internacional do Livro do Ceará, quando então serão reunidos alguns desses autores portugueses até aqui publicados. Enfim, ampliar o ambiente de difusão e ao mesmo tempo criar condições para um diálogo entre as duas culturas.

AAF Por fim, em que a poesia de Portugal se diferencia da do Brasil e em que a poesia do Brasil se diferencia da de Portugal. Qual o benefício dessa informação poética entre os poetas dos dois países?

FM Estas comparações correm um sério risco de estabelecer equívocos de âmbito hierárquico. Após o período áureo das vanguardas, a margem de lá do Atlântico retomou seu apego pela tradição, e talvez se possa ver aí demasiado receio de meter-se em novas aventuras estéticas. Na margem de cá, criou-se um estado frenético de obsessão pela vanguarda, rejeitando estruturas poéticas enganosamente entendidas como tradicionais (ou mesmo caducas). Mas isto em linhas gerais. Seria quando menos ingênuo (ou mesmo irresponsável) determinar um comportamento padrão nas duas situações. Inclusive porque sempre haverá dois planos em que se move a criação artística: a superfície em que reinam as virtudes do imediato e do transitório, e o rio subterrâneo por onde teimam os pecados do apuro e da permanência.

 
Álvaro Alves de Faria (Brasil, 1942). Poeta, ensaísta e jornalista. Autor de livros como Motivos alheios (1983), O azul irremediável (1992) e À noite, os cavalos (2003). Contato: poetalves1@hotmail.com.
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