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II BIENAL DE POESIA
SILVES. 2005
MANUEL G. SIMÕES
POEMABRIL:
MEMÓRIA E DESENCANTO DA "REVOLUÇÃO DOS CRA VOS"

Os textos são, de qualquer modo, indicadores do património acumulado; das perguntas, ideias, vontade de saber, de participar e cantar aquele grande 'facto' colectivo" (8). A antologia veria uma 2ª ed., no 20º aniversário do acontecimento, recuperando textos e nomes ausentes da primeira e evocando de modo particular a memória de José Afonso, com a "homenagem ao grande dinamizador cultural, ao compositor, ao cantor por antonomásia do espírito que desencadeou o 25 de Abril, de que se tomou por direito seu símbolo privilegiado" (9).

E sobre a funcionalidade textual da nova edição, afirmam ainda os responsáveis: "Vinte anos decorridos sobre aquela madrugada de muitas promessas, a palavra dos poetas volta a testemunhar o encontro de vozes, necessariamente diversas mas consonantes na sua essencialidade: a recusa do silêncio e a legítima reapropriação de um acontecimento que se tomou, pela sua força explosiva, matéria poética e metáfora da utopia que preencheu o sonho do Homem" (10).

A primeira edição de Poemabril inclui cinco depoimentos de outros tantos "capitães de Abril" e composições poéticas de 62 autores, muitas delas inéditas, escritas talvez como impulso criador após uma espécie de "convocação geral" ou "aviso à navegação" posto a circular pelos coordenadores. A segunda edição publica os mesmos depoimentos e recupera poemas ausentes da primeira, na tentativa de colmatar algumas lacunas injustas, e, como entre uma e outra intercorre um espaço de tempo significativo, foi possível inserir na segunda textos produzidos ou publicados depois de 1984, totalizando, desta maneira, um elevado número de poetas (73) sensíveis ao tema da revolução de Abril de 1974.

3. A antologia Poemabril revela-se, pois, como repositório da memória poética de um evento extraordinário que agitou a consciência colectiva de um país. Através duma perspectiva diacrónica, que a distância temporal permitia recuperar e actualizar, muitos poetas recorrem à fórmula retórica da interrogação, acentuando a perplexidade e o desencanto ("um cravo recentemente apunhalado" de Amadeu Baptista, p. 59; "e foi para esta farsa/ que se fez a revolução de Abril" de José Gomes Ferreira, p. 187) (11) que a normalização do espírito e acção revolucionários acabaria por determinar, embora haja vozes obstinadas como a de José do Carmo Francisco: "Só amordaçam mas não matam a Revolução" (p. 173).

Mas não faltam exemplos de pura exaltação, de euforia perante o inesperado eclodir duma história há muito anunciada e que, não obstante as várias tentativas, por várias vezes tinha sido adiada e relegada para os arquivos da esperança. Abundam, por isso, os casos de apologia épica, não sem o assumir da auto-crítica colectiva pela tardia intervenção, de que são paradigmas Egito Gonçalves (pp. 123-124) ou mais explicitamente Carlos Loures ("Dia um, ano primeiro"):

A criminosa apatia que por tantos anos
nos enevoara o gesto e sufocara a voz
esfumava-se na rosa evanescente da alvorada
e surgia agora transformada em canção (p. 115).

E também se exalta a força do verbo e da acção de figuras que se salientaram no processo revolucionário, como no poema "A Vasco Gonçalves", ainda de Egito Gonçalves ("Com a lucidez das grandes horas/ poderás dizer-nos o que se passa aqui exactamente?", p. 124), onde não falta a já mencionada interrogação perplexa (12), ou no texto poético de Eugénio de Andrade, escrito em 14/5/76, dedicado à mesma figura: "Habitavas a terra, o comum da terra, e a paixão/ era morada e instrumento de alegria" (p. 129).

Tratando-se de um evento cuja visibilidade ficou marcada, em grande parte, pela iconografia floreal dos cravos, não surpreende que muitos poetas tenham recorrido a essa imagem com maior ou menor capacidade de recuperação desse elemento para o tecido poético. Estão neste caso, entre outros exemplos, António Cabral ("Ainda hoje se fala nesse dia") num poema datado de 16/10/83 e em que curiosamente as "flores de Abril" participam do processo de libertação através dum diálogo, antes impensável, que "escancarou as coisas interditas":

[...] Um hálito forte
de Primavera excitava o húmido

corpo da noite e alguns cravos
trocavam na varanda suas palavras
recentemente proibidas (p. 67);

e igualmente Armindo Rodrigues ("Portugal, cravo vermelho", pp. 96-99), com a particularidade de a transposição metafórica atingir um espaço mais abrangente, apoiando-se a memória poética num tempo de euforia (primeiro de Maio de 1974) e de espontânea participação unitária, o que parece justificar os dois últimos versos do poema: "Portugal todo floriul num mesmo cravo vermelho" (p. 99); ou ainda Hélia Correia ("25 de Abril") num texto que mantém a mesma atmosfera de festa triunfal, agora quase báquica numa comunhão com o vinho, a dança e o amor, numa orgia dos sentidos em que os cravos adquirem uma funcionalidade libertária:

Bebamos, pois, o vinho destas vozes,
soltemos estes cravos como potros
embriagados.
Como intensas éguas
incendiárias (p. 140).

Em contraposição com a memória do caos e da opressão, patente; por exemplo, em Armindo Rodrigues ("Prisão de Caxias, 1949") ou em Jorge de Sena ("Cantiga de Abril"), o lexema "liberdade", com as suas múltiplas conotações ("Não hei-de morrer sem saber qual a cor da liberdade", escreve Jorge de Sena como epígrafe ao poema acima mencionado, p. 157), não podia estar ausente de um discurso que faz daquele conceito a própria arma, não apenas com a finalidade de exorcizar fantasmas do passado mas, mais precisamente, atribuindo-lhe a função de "símbolo fortíssimo", "ave indócil a que não renunciámos", no dizer de Amadeu Baptista (p. 59), a que se associam Artur Lucena ("Serei seremos os exactos amigos da liberdade", p. 107), Casimiro de Brito ("Memória do primeiro de Maio", p. 121) ou Eugénio de Andrade ("Rente à fala, 4"), um poema datado de 26/4/74 e em que a conquista da liberdade se manifesta na reapropriação da terra,

Esta terra de sol esta terra ainda
é bem ela esta terra inocente
este corpo há que deixá-lo ser água
não é fácil separá-lo da luz
quase nua esta terra agora minha (p. 129),

uma "terra inocente" que é metáfora de "país" e que se apresenta, na perspectiva do sujeito poético, conotada por elementos significativos - "sol", "água", "luz" - que contribuem para a "quase nudez" de um corpo social no limiar da transfiguração. É este igualmente o sentido do belíssimo poema de Sophia de Mello Breyner Andresen ("25 de Abril"), não incluído na antologia por lamentável esquecimento, e que aqui se transcreve, até como homenagem à grande poetisa:

Esta é a madrugada que eu esperava
O dia inicial inteiro e limpo
Onde emergimos da noite e do silêncio
E livres habitamos a substância do tempo (13).

 

(8) lbid. , p. 7.

(9) C. Loures e M. Simões, "Nota à segunda edição", cit., p.12.

(10) lbid., p. 11.

(11) Todas as citações são feitas a partir da segunda edição, cit., indicando apenas o nome do autor e a respectiva pàgina.

(12) "Escrito em 25/4/77, reagindo ao facto de o 25 de Abril se ir comemorar com uma parada militar e do mais que era a situação revivalista de então" (p. 123).

(13) Cit. de Abril. 30 anos trinta poemas, organização e prefácio de José Fanha e José Jorge Letria, ilustrações de Armando Alves e Rogério Ribeiro, Porto, Campo das Letras, 2004, p. 9. Mas Sophia de Mello Breyner Andresen haveria de produzir outro belíssimo poema intitulado "Revolução": "Como casa limpa/ Como chão varrido/ Como porta aberta// Como puro início/ Como tempo novo/ Sem mancha nem vício// Como a voz do mar/ Interior de um povo// Como página em branco/ Onde o poema emerge// Como arquitectura/ Do homem que ergue/ Sua habitação" (Ibid. , p. 31 ).

SILVES, CAPITAL DA PALAVRA ARDENTE